Limpeza, moderação e pudor: a intimidade dos casais

Nas primeiras décadas do século XX, médicos e fisiologistas se ocuparam da sexualidade dos casais, dando importância à questão higiênica dos órgãos genitais e da função genésica. O assunto era tratado com rigor pelos estudiosos como o Dr. Jaf, famoso por seu O casamento: amor e higiene. Havia uma série de regras sugeridas pelo especialista:

Dos vinte aos trinta anos, o homem casado pode exercer seus direitos duas a quatro vezes por semana deixando um dia d’intervalo de cada vez. Esgotar por um coito repetido cinco e seis vezes por dia, assim como o fazem os rapazes, é preparar arrependimentos para mais tarde. Dos trinta aos quarenta anos, o homem deve limitar-se a duas vezes por semana. Dos quarenta aos cinqüenta, uma vez todos os quinze dias e menos ainda se não sentir necessidade. A continência é uma necessidade para a segunda velhice; o sexagenário não deve ir levar ao altar de Venus senão raríssimas vezes, porque, n’esta época da vida, o licor seminal leva muito tempo a reproduzir-se. O septuagenário deveria abster-se do coito: o enorme desperdício de fluido nervoso daí resultante mergulha-o num esgotamento sempre prejudicial à sua constituição”.

A mulher também tinha seus “preceitos” a seguir: “deve ser sóbria com os prazeres do casamento porque essa sobriedade lhe conservará a frescura dos seus encantos que os excessos depressa murchariam. Os prazeres solitários a que se entregam muitas mulheres descontentes com os seus maridos são uma manobra perigosa, que as torna nervosas as predispõe às flores brancas, ás irritações dos órgãos genitais e às neuropatias dos seus órgãos. Uma mulher prudente deve contentar-se sempre com aquilo que o marido lhe dá e nunca exigir mais. No caso em que o marido excessivamente vigoroso abusasse da sua atividade genital, o dever d’uma mulher prudente é empregar todo o império que tem sobre ele para moderar o seu ardor, abrandar o seu entusiasmo e fazer-lhe compreender que os excessos venéreos são prejudiciais não só a conservação das suas faculdades viris, mas que também são funestos aos filhos procriados num estado de esgotamento”.

Preocupado com a higiene no casamento. Dr. Jaf metralhava os casais com uma longa lista de recomendações: limpeza das partes para manter “a frescura de sua saúde” com abluções. Tranquilidade do local da cópula, pois ela requeria “segredo”. “O receio, o barulho, assim como a falta d’asseio e a repugnância são outros tantos obstáculos para esse ato. O homem deve pedir o prazer à esposa com palavras amáveis; deve arrastá-la delicadamente a satisfazer os seus desejos e nunca deve exigir à força. Os transportes d’uma imaginação erótica, os desejos imoderados de gozo sensual são os mais perigosos inimigos da virilidade. Longe de se excitar por ideias lúbricas, o homem razoável deve esperar que o despertar do órgão lhe anuncie a necessidade e o instante de o satisfazer.

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Pudor e recato, sobretudo no quarto, eram sinônimos de distinção. Só mulheres de reputação duvidosa tomavam iniciativas. Quanto às centenas de milhares relações vividas fora do casamento, estas passaram a ser consideradas “imorais”. Membros das camadas mais baixas da população, como ex-escravos, operários, imigrantes pobres, negros e mulatos que vivessem em amancebamentos, concubinatos ou ligações consensuais eram acusados de “conduta indecente”. Em 1913, a obra anônima O problema sexual, esclarecia que “no concubinato dissipam-se sensações de que temos necessidade para o casamento, para as grandes ações de nossa existência, para reacender a chama da vida”, em razão de que “todas as forças das nossas faculdades amatoriais” devem ser reservadas para “aquele amor”, pois é muito longa a vida “para ser suportada com um amor valetudinário”, ou seja, enfermo, débil.

Durante o Estado Novo, Getúlio Vargas selou um “pacto moral” com a Igreja. Esta se tornaria uma grande aliada na consolidação de uma ética cristã baseada na valorização da família, do bom comportamento, do trabalho e da obediência ao Estado. Essa nova aliança se deu graças ao apoio de cardeais como D. Leme às preocupações varguistas com as classes trabalhadoras. E o operoso bispo aproveitou para valorizar o sacramento do matrimônio entre a gente que vivia em ligações consensuais. O movimento do “casa ou larga” incentivava as classes subalternas, nas cidades ou no interior, a contrair matrimônio in face ecclesia. Virgindade, contudo, seguia assunto sério. Os homens conheciam uma “donzela pelo andar”. Ser “furada”, “cair no mundo” ou “não prestar mais” era coisa que definia um destino de mulher. Sua reputação social se media exclusivamente pela capacidade de resistir aos avanços masculinos.

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No outro lado da moeda, avesso das “puras”, as “mundanas” e “artificiais” eram sinal de problema. Festas e bailes sem medidas, a freqüentação de lugares fechados, a promiscuidade de contatos físicos ou a excessiva coqueteria feminina horrorizavam até os médicos higienistas preocupados, então, com uma nova percepção dos corpos, voltada para a vida ao ar livre, natural e saudável. É deles a idéia de perseguir os “artifícios”, especialmente os cosméticos, utilizados para esconder “defeitos físicos” que pudessem interferir no momento da escolha de uma parceira. As “mundanas”, que faziam o possível e o impossível para atrair atenções eram alvo de reprimendas vindas de todos os lados. Eram consideradas “artificiais” as que usavam recursos externos como trajes da moda e cosméticos, mas também as que tinham um comportamento corporal – poses e gestos –considerado excessivamente estudado. A hostilidade frente aos abusos dos artifícios vinha, certamente, da vontade de limitar os apelos sexuais da aparência.

– Mary del Priore.

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