A sensibilidade olfativa dos moradores do Brasil nos tempos coloniais estava longe daquela que já se instalara na Europa, junto com a preocupação de “oxigenar os ares” e de banir definitivamente o mau cheiro. Tal movimento suscitava a intolerância em relação aos odores do corpo que entre nós ainda eram plenamente admitidos. Teóricos já advertiam para os riscos de a gordura tapar os poros, retendo “humores” maléficos e imundícies”, das quais a pele já estava carregada. A película nauseabunda que os antigos acreditavam, funcionar como um verniz protetor contra doenças, na verdade bloqueava as trocas “aéreas” necessárias ao organismo.
Essa mudança provocou uma passagem da natureza ao artifício. Os perfumes que remetiam aos adores animais – âmbar, almíscar – saíram de moda por sua violência. Antes, as mulheres os utilizavam, não para mascarar seu cheiro, mas para sublinhá-lo. Havia nele um papel sexual que acentuava a ligação entre as partes íntimas e o odor. Na Europa “civilizada”, porém, a emergência de uma nova forma de pudor ameaçava esta tradição, substituindo-a por exalações delicadas à base de lavanda e rosas. O bidê foi então introduzido na França, tornando-se o auxiliar do prazer. As abluções femininas se revestiam de erotismo. Os talcos perfumados e outros pós, à base de íris, flor de laranjeira e canela, cobriam as partes íntimas. Um simples perfume aguçava a consciência de si, aumentando o espaço entre o próprio cheiro, e o dos outros: multidão fedorenta. O odor forte, considerado um arcaísmo, se tornou coisa de roceiras e prostitutas velhas.
Entre nós, o âmbito da higiene íntima feminina, de difícil pesquisa histórica, foi brevemente abordado pelo poeta baiano Gregório de Matos. No final do século XVII, ele escreveu sobre a carga erótica do “cheiro de mulher”. Sim, cheiros íntimos agradavam: o do almíscar era um deles. O poeta criticou uma mulher que o seduzira apesar de lavar a vagina antes do ato sexual, maldizendo as que queriam ser “lavandeiras do seu cu”. Certa carga de erotismo dependia do equilíbrio entre odor e abluções, embora houvesse muitos, como o Boca do Inferno, que preferissem o sexo feminino recendendo a “olha” e sabendo a “sainete”; “Lavai-vos, minha Babu, cada vez que vós quiserdes”, cantava o poeta, “já que aqui são as mulheres lavandeiras do seu cu.”
“Lavai-vos quando o sujeis
E porque vos fique o ensaio
Depois de foder lavai-o
Mas antes não o laveis”
E reclamava:
“Lavar a carne é desgraça
Em toda a parte do Norte
Porque diz, que dessa sorte
Perde a carne o sal, a graça;
E se vós por essa traça
Lhe tirais o passarete
O sal, a graça, o cheirete,
Em pouco a dúvida topa
Se me quereis dar a sopa
Dai-ma com todo o sainete.”
O cheiro de almíscar ainda agradava por estes lados do Atlântico onde o bidê só aportou no século XIX. Mas lavar o corpo, com quê? Um pedaço de sabão era bem inestimável. Que o diga certo Baltasar Dias, em 1618. Ao ver que fora roubado do seu, trazido com dificuldade na caravela que o trazia da cidade do Porto para Pernambuco, deu de “dizer palavras de cólera e que o Diabo o levasse de seu corpo”, numa explosão de rara fúria. Conclusão? Foi denunciado à Inquisição por blasfêmia.
Banhos? Só em caso de doença. D. João VI seria o melhor exemplo. Contam biógrafos que picado por um carrapato na fazenda de Santa Cruz, onde passava o verão, teve a perna inflamada e muita febre. Os médicos lhe recomendaram banho de mar. O rei tinha pavor de ser atacado por peixes ou crustáceos e por isso, mandou construir uma caixa de madeira, dentro da qual era mergulhado nas águas da Praia do Caju, nas proximidades do Palácio de São Cristóvão. A caixa era uma banheira portátil, com dois varões transversais e furo laterais por onde a água do mar podia entrar. O rei costumava ficar imerso ali dentro por alguns minutos, com a caixa imersa e sustentada por escravos. O iodo marinho ajudaria a cicatrizar as feridas. O uso de caixas para banhos era conhecido das cidades europeias, cortadas por rios.
Esses mergulhos improvisados na Praia do Caju, a conselho médico são a única notícia que se tem de um banho de D. João nos treze anos em que permaneceu no Brasil. Ao que tudo indica, o banho de imersão era coisa de estrangeiros no século XVIII. Coisa de “gosto inglês” como comentou Juan Francisco de Aguirre, ao observar que apenas nas chácaras sob influência estrangeira, se contava surpreendentemente com “lugares para banhos com abundância de água”.
Passadas décadas, Luccock complementou que as abluções não eram “nada apreciadas pelos homens. Os pés são geralmente a parte mais limpa as pessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas que, todos eles andam muito expostos em ambos os sexos, raramente recebem a benção de uma lavada”. Os inventários confirmam: toalhas “para enxugar” só as “de cabeça”, “de rosto” ou “de mãos”. Mais nenhuma.
- Texto de Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”, Editora LeYa, 2016.
“Banho turco” (1862), de Jean-Auguste-Dominique Ingres.