Em 24 de outubro, a cúpula do exército depôs o presidente Washington Luís. Apesar da resistência de alguns generais, em 3 de novembro de 1930, tomou posse o novo dirigente. No último dia de outubro, Vargas atingiu a capital. As fotos não deixam mentir: chegava um caudilho. Vestia uniforme militar, lenço vermelho no pescoço e chapéu gaúcho de aba larga. Milicianos recrutados nas estâncias cavalgaram pelas ruas da capital e, ao atingir o centro da cidade, amarraram seus cavalos ao pé do obelisco da Avenida Rio Branco.
Reações? Apesar das estratégias para o sucesso da conspiração, houve luta e resistência por quase um mês. Em Porto Alegre, vinte mortos. Em Minas Gerais, combates por cinco dias. Os nordestinos, com exceção dos baianos, aderiram e saíram às ruas para saudar Juarez Távora, que chefiou todas as operações que deram à vitória à revolução no Norte. Em São Paulo, na fronteira com o Paraná, em Itararé, seis mil soldados legalistas com canhões e aviões aguardavam, armas em punho, os oito mil rebeldes. Ao saber que Washington Luís fora deposto, os legalistas se renderam. A aguardada batalha não aconteceu! Depois de ter sido aclamado em Ponta Grossa, Getúlio passou por São Paulo onde ficou por 24 horas e indicou um interventor para o governo do estado. Dali rumou para o Rio e o Catete.
E quem retirou Washington Luís do palácio? Três militares: os generais Tasso Fragoso, Mena Barreto e o almirante Isaías Noronha. E não foi fácil. Durante sete horas ele recusou-se a receber a “junta governativa”. Tasso Fragoso, seu amigo, tentou convencê-lo de que a renúncia seria “para evitar mais derramamento de sangue”.
“- Não renuncio. Do palácio só saio morto”, retrucou Washington Luís. Uma hora mais tarde, destituído do poder, foi levado para o mesmo forte de Copacabana, no qual, oito anos antes, um grupo tentou derrubar o governo. Dois dias depois, foi embarcada num navio em direção à Europa, onde ficou por 17 anos. Júlio Prestes também partiu para o exílio.
Revolução necessária ou dispensável, Humberto de Campos refletiu sobre o golpe com profundo ceticismo:
“O golpe militar que acaba de mudar a fisionomia política do país não me apavorou, nem, sequer, me abalou de modo visível. Sinto-me doente, na mais aflitiva pobreza, e vejo, pelos jornais, que senadores e deputados em grande número se acham presos, recolhidos a fortalezas e quartéis, ou asilados nas legações estrangeiras. Conservo-me, porém, na minha casa, preferindo ser preso a fugir. Se me procurarem, entregar-me-ei. […] Tarde chuvosa e úmida a Avenida Central tumultua. Os ônibus se movem com dificuldade. Raras figuras femininas. E a grande massa de homens, vestidos de cinzento ou preto, quase que se funde no cinza da tarde. Essa onda, movendo-se confusa, dá a idéia de um turbilhão de lava que rolasse na sombra.
– Que é isso? Indago.
E Felix: – É o Flores da Cunha que chega para amarrar o seu cavalo no Obelisco…”.
Nelson Rodrigues não escondeu o medo que os novos tempos lhe trouxeram quando irrompeu o inesperado e, depois, o insuportável. Amparado na Lei de Segurança Nacional o governo deflagrou uma estratégia repressiva e ele viu serem arrastados e presos seus irmãos, Milton e Mário, denunciados por um vizinho. Ainda assistiu, chocado, o empastelamento do jornal A Crítica, de seu recém-falecido pai, Mário Rodrigues:
“Vinte e quatro de outubro de 1930. Naquela madrugada eu voltara para casa às três, três e pouco. Vínhamos eu e Aldemar Baía, quando dobramos na esquina do Hospício, a caminho do Túnel Novo, olhei e não vi um soldado. Noite quieta, passiva; as ruas lívidas e mais longas, e, por toda a parte, um silêncio de cidade abandonada. O túnel vazio também. O táxi me deixou em casa. E o Baía, que voltou sozinho, já encontrou o túnel ocupado. O 3º Regimento saíra e, numa progressão fulminante, ocupava todas as posições. Em casa, sem desconfiar de nada, eu fazia a minha ceia solitária. E, depois, apanhei um romance e li, se tanto, umas dez páginas. Fui dormir. Comecei a sonhar, imediatamente. Ouvia gritos; mulheres alucinadas se esganiçavam nas sacadas; buzinas acordavam os galos; e o medo escorria das paredes.
Acordei e continuava ouvindo. Jofre veio correndo: “Revolução!” Pulei da cama. Fomos para a janela, olhar a rua. O pânico era só de mulheres, algumas de camisola na sacada. Do lado, um vizinho punha uma trouxa de roupa no automóvel. Carros passavam em pânica velocidade. Sujeitos na calçada, berrando. Eu, Jofre, os outros irmãos, numa exaltação, numa euforia, como se a revolução fosse uma festa delirante.
E não tive medo. Minha mãe acordou, minhas irmãs, e todas sem medo. Não percebemos que, aquilo, para nós, era a catástrofe. Só senti o medo, o grande medo, a solidão brutal, horas depois, quando passamos, de automóvel, pela esquina da Rua do Carmo. Estavam empastelando o jornal; e, então, o medo baixou em mim. Jofre, não. Nunca o vi ter medo de nada e de ninguém. Queria saltar e brigar, sozinho, contra a multidão enlouquecida.
O chofer reduzira a marcha. Vinham dois sujeitos pela calçada e um deles disse: “Olha os filhos de Mário Rodrigues!” Berrei para o chofer: “Depressa! depressa!” Outros jornais eram empastelados também: A Noite, Jornal do Brasil etc. etc. Eu me crispava dentro do automóvel; cerrava os dentes. E se o automóvel parasse? E se nos reconhecessem? E se eu fosse linchado? Linchado pela multidão. A meu lado, Jofre explodia em palavrões.
O grande medo. Não era a primeira vez que o sentia na carne e na alma. Meses atrás, vivera um desses momentos de pavor que ninguém esquece. Foi quando meu irmão Roberto levou um tiro e gritou. O que senti, naquele momento, e antes do amor, da compaixão, da infinita solidariedade – antes de tudo, foi o medo. Durante anos, eu o escondi de mim mesmo; dei-lhe outro nome. Não era medo, era outra coisa. Eu me imaginava apenas solidário, apenas compassivo, e só possuído de amor. Foi muito depois, em Campos do Jordão, que eu admiti para mim mesmo a verdade. […] Voltamos desta vez pelo Túnel Velho. Tudo ocupado pelo Exército. Soldados faziam parar o carro, olhavam a cara dos passageiros e davam passagem. E, então, comecei a me sentir salvo. Meu pai fizera toda a campanha de Júlio Prestes; e, depois de sua morte, a Crítica seguira a mesma linha. E eu não imaginava que a vitória de Getúlio Vargas era quase a destruição de minha família”.
E como o golpe foi vivido no interior, nas pequenas localidades, é Veríssimo quem relata:
“Ao amanhecer do dia 4 de agosto de 1930, espalhou-se pela cidade a sensacional notícia. Fora deflagrada em todo o país a muito anunciada e protelada revolução contra o Presidente Washington Luiz e quase todo o estado do Rio Grande do Sul já estava na mão dos rebeldes. Durante a noite, as duas unidades que compunham a guarnição militar de Cruz Alta haviam aderido ao movimento… Naquelas semanas assisti ao desfile dos soldados e voluntários civis que iam derrubar o Governo Federal para instaurar no país – conforme diziam os jornais e os oradores revolucionários – uma nova era de verdadeira moralidade, em que se pudesse promover o progresso do Brasil e a felicidade de seu povo. Eu olhava para aquilo tudo com um olhar morno e cético… Talvez o “meu” ceticismo fosse apenas uma máscara com que eu procurava disfarçar minha preguiça em tomar uma posição. Havia, porém, momentos em que eu me deixava contagiar pelo entusiasmo dos revolucionários, pelos dobrados que tocavam as bandas de música militares e pelo espetáculo dos lenços vermelhos”.
Ou na voz de uma jovem, Adalgisa Néri, com igual ceticismo e até mesmo distanciamento: “Nessa época, os jornais noticiavam um movimento revolucionário no país. Muitos se interessavam pelo acontecimento como novidade, e poucos, como necessidade. Uns tomavam o partido do governo, outros pelo revolucionário. Discussões, previsões, apostas, pouco idealismo e bastante oportunismo transpareciam nas conversas. Onde estavam as vantagens e as desvantagens do governo e da revolução para o bem do povo? […] Gritos, urros e manifestações de vitória empurraram-me ao portão da casa”.
O povo, longe de bestializado, apoiava. Quem conta é o jornalista Carlos Heitor Cony: “Com a vitória da Revolução de 1930, enquanto Vargas não chegava ao Rio para receber o espólio do movimento militar, o povo do Rio de Janeiro ficou assanhadíssimo. Comprou na Casa Mathias e na A Colegial fardas de brim cáqui que os escolares usavam e que, em miniatura e intenção, eram a réplica das fardas militares daquele tempo. Colocou um lenço vermelho ao pescoço, e já que não chegara a haver uma batalha que desse glória a todos, fez o que estava à mão: quebrou vidraças, botou fogo em algumas repartições do governo, empastelou A Crítica, de Mario Rodrigues e incendiou O País. A redação, na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Sete de Setembro, era encimada por uma cúpula de aço importado da Bélgica. Com o incêndio, a cúpula caiu, deixando enorme rombo no teto. Piada da época: “Enfim, um país a céu aberto!”. O pai ficou sem emprego, e durante algum tempo, na clandestinidade”.
Preocupados em definir o movimento como “conservador”, “contra-revolucionário” e “nem de origem, nem de caráter comunista”, os revolucionários prometiam “promover, sem violência, a extinção progressiva do latifúndio, desmontar a máquina do filhotismo parasitário e sanear o ambiente moral da pátria”. Acabara-se a “república dos fazendeiros”. Prometiam-se, também, novos tempos: os da presença de um Estado forte, centralizado, paternalista, patriótico e gestor da economia. Alguns países da Europa eram o exemplo: Itália e Alemanha.
Novos tempos ou tempos sombrios? A impressão de incerteza e medo transpira no Diário de Humberto de Campos que assim recapitulou as primeiras semanas depois da chegada de Vargas ao Catete:
“Um jornal de anteontem (28 outubro) foi entrevistar no forte Copacabana, onde se acha preso, o presidente deposto:
– Dr. Washington Luiz… – começou o jornalista.
– Dr. Washington Luís, não; Sr. Presidente da República. Até o dia 15 de novembro, se não morrer, serei eu o presidente constitucional do Brasil.
O presidente deposto, mas não resignatário, tem dado assim uma prova de fortaleza admirável. Ficará preso até 15 de novembro, mas, não renunciará.”
“Sexta-feira, 31 de outubro:
“Leio em uma folha de São Paulo, a entrevista que lhe concedeu um meninote de 16 anos, que veio do Rio Grande do Sul combatendo ao lado das forças revolucionárias. Chama-se Armando Fernandes, e é natural de D. Pedrito.
– Seus pais não se oporiam à sua incorporação? – pergunta o jornalista.
– Não, respondeu – Era meu desejo vir também para fazer companhia aos meus irmãos Epaminondas e Fernando.
– E você não teve medo dos tiros?
E ele:
– Sempre a gente se assusta, mas, na hora, a raiva dá coragem.
É essa, na verdade, a mais flagrante definição de bravura: a coragem que vem da raiva.
“Segunda-Feira, 3 de novembro.
Posse de Getúlio Vargas, no cargo de Presidente da República Brasileira, como chefe da Revolução vitoriosa. Primeiras notícias sobre seu ministério, composto de gaúchos e mineiros quase que exclusivamente e que causa boa impressão. E primeira desilusão, também. Juarez Távora, figura primacial e heróica, da revolução. Que declarava a dois dias que nenhum militar deveria aceitar postos políticos, aceita ele próprio o de Ministro da Viação depois de ter investido o seu irmão no de Presidente Revolucionário do Ceará. É homem e está, como os outros, sujeito às contingências humanas. Acabará talvez, pacífico senador da República e honrado chefe de oligarquia.
5 de novembro de 1930:
“Espetáculo original e bizarro o da cidade, nesses últimos dias. Trens e vapores têm despejado no Rio, em menos de uma semana, mais de trinta mil homens vindos do Rio Grande, do Paraná, de Minas e do Nordeste, os quais, com seu fardamento de campanha, dão à capital o aspecto de um país conquistado pelo inimigo… Espalhados pelas ruas centrais, isolados ou em magotes, o sentimento que despertam é, ora de piedade, ora de tristeza, mas sempre amargo e doloroso, Trajando calça e blusa cáqui geralmente em desproporção com o corpo que as veste; perneiras; chapéu mole de dois bicos da mesma fazenda da roupa; completam eles a indumentária com um lenço, ou um simples pedaço de pano, ora vermelho, ora verde e amarelo que trazem ao pescoço e que é símbolo da revolução. Esses tipos que exibem esse “uniforme”, a que falta uniformidade, são os mais pitorescos. Há o rapazola de boa família, cara raspada e suíça até o meio da face, que pisa a Avenida como conquistador, percorrendo-a marcialmente a passos largos, na convicção de que os passeios estão cheios de mulheres que saíram de casa para vê-los. Há o velhote alourado, colono alemão ou polaco do Paraná, de pele curtida na lavoura, bigode sujo cortado rente e que marcha atrapalhado com as perneiras, à semelhança da galinha que leva alguma coisa presa no pé. E há o tipo mineiro ou do Nordeste, o caboclo miúdo, o mulato de gaforinha, ou o preto verdadeiro que se deixa ir pelas ruas desconfiado, como quem se encontra envergonhado de andar metido naquelas roupas no meio de gente que não conhece. E essa multidão está aquartelada em todos os edifícios públicos da cidade. O Senado despejava pela escadaria de mármore, um turbilhão de homens semivestidos, quase todos em mangas de camisa, dezenas dos quais dormiam sobre as capas de campanha estendidas no gramado do jardim circundante. No parque ajardinado fumegavam marmitas em fogões improvisados. O Senado é, hoje, um simples quartel da soldadesca revolucionária!”.
“Outro julgamento da Revolução: foi preso a bordo de um navio estrangeiro, no momento em que este atracava e levado para a Casa de Detenção, o ilustre homem de ciência, Professor Carlos Chagas, diretor do Instituto de Manguinhos, que acaba de realizar conferencias na Alemanha, na França e na Itália, a convite do governo desses países. Dado o alarme pela imprensa, o delgado que fez a captura, declarou ingenuamente:
– Eu não sabia. Eu supus que Carlos Chagas era o ex-delegado Francisco Chagas, acusado de homicídio na pessoa do negociante Niemayer…
Esse fato e outros oferecem o metro para avaliação da mentalidade que preside à “regeneração da República”. Aos homens do dia sobram boa vontade e patriotismo. “Mas faltam, infelizmente, inteligência e cultura, sem as quais a obra humana terá, fatalmente, o cunho da mediocridade e do ridículo”.
“Continuam as prisões de homens públicos mais em evidência nos governos passados… Fundam-se nos Estados tribunais revolucionários para julgamento de políticos depostos. Reprodução pura da Revolução francesa, em 1930. Os jornais vêm repletos de denúncias anônimas em que cada covarde, mergulhado na sombra, denuncia o inimigo…”.
Como já assinalado por Humberto Campos, e apesar da resistência de alguns generais, em 3 de novembro de 1930, tomou posse o novo dirigente e teve início a presidência de Getúlio Vargas.
- Mary del Priore. “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (vol.3), editora LeYa, 2017.
por favor, corrija ‘a céu aberto’, na fala de Carlos Heitor Cony
Excelentes textos, leio sempre e publico também!
abraços
Obrigada!
O historiador tem um papel de significância extrema. Descortinar os bastidores da nossa política. O que acontece hoje no atual Governo só difere na ausências das “fardas”, mas o método e os objetivos não mudaram. Obrigado Del Priore, por nos ajudar entender essa relação política do Brasil.
Olá, professora!
Muito obrigado por compartilhar esse precioso material conosco. A senhora é uma grande historiadora.