Rede Globo entrou em uma grande polêmica ao lançar o seriado “Sexo e as Negas”: racismo, machismo e até mau gosto – reclamaram muitos espectadores que se sentiram ofendidos com a proposta do programa. Na tentativa de fazer humor, parodiando o famoso “Sex and the City” norte-americano, a emissora realmente escorregou feio, revivendo séculos de degradação a que as mulheres “de cor”, como eram chamadas na época, foram submetidas.
A identificação da mulher negra, mulata e indígena (as negras da terra) como objeto sexual era uma realidade desde o Brasil Colônia. “Branca para casar, negra para trabalhar e mulata para f…” era um dos ditados de época que mostram cruamente a situação. Havia poucas europeias por aqui, e os homens se relacionavam com as mulheres “de cor”, de maneira, muitas vezes violenta. Estupros de meninas escravas eram comuns e havia a crença de que fazer sexo com uma “negrinha” virgem poderia curar a sífilis.
Segundo Mary del Priore, em “História do Amor no Brasil”, o tradicional racismo era muito presente, sendo que os gestos mais diretos, a linguagem mais chula era reservada a negras escravas e forras ou mulatas; às brancas se reservavam galanteios e palavras amorosas. “Afinal, a misoginia racista da sociedade colonial as classificava como mulheres fáceis, alvos naturais de investidas sexuais, com quem se podiam ir direto ao assunto sem causar melindres”.
Degradadas e desejadas ao mesmo tempo, – explica Ronaldo Vainfas – as mulheres “de cor” seriam o mesmo que as soldadeiras de Lisboa no imaginário de nossos colonos: mulheres “aptas à fornicação”, em troca de alguma paga. E na falta de mulheres brancas, fossem para casar ou fornicar, caberia mesmo a elas o papel de meretrizes de ofício ou amantes solteiras em toda a história da colonização. Nos séculos seguintes, lembra Ronaldo Vainfas, “a degradação das índias e a sua reificação, como objetos sexuais dos lusos, somar-se-iam as das mulatas, das africanas, das ladinas e das caboclas – todas elas inferiorizadas por sua condição feminina, racial e servil no imaginário colonial. Mais desonradas que as solteiras do Reino, pois além de putas, eram de cor, nem por isso ficaram as cabrochas do trópico sem a homenagem do poeta”.
No século XVII, Gregório de Matos dedicaria vários de seus poemas a certas mulatas da Bahia, em geral prostitutas; “Córdula da minha vida, mulatinha de minha alma” folgava o Boca do Inferno. Matos louva o corpo e os encantos da mulata que, como a índia do século XVI, vira objeto sexual dos portugueses. Mas o mesmo poeta não ousa brincar com a honra das brancas às quais só descrevia em tom cortês, ao passo que às negras d’África ou às ladinas refere-se com especial desprezo: “anca de vaca”, “peito derribado”, “horrível odre”, “vaso atroz”, “puta canalha”. À fornicação e, eu acrescentaria, aos amores tropicais, não faltaram pontadas de racismo e desprezo à mulher, lembra Mary.
Portanto, quando uma mulher nos dias de hoje diz “não sou uma das suas negas”, ela está exatamente se referindo a este passado racista e patriarcal. “Não, não faço parte do seu plantel de escravas, com as quais você pode fazer o que quiser. Sou branca e mereço respeito”. Infelizmente, parece que a situação não mudou tanto assim…
– Márcia Pinna Raspanti.
“Negras livres vivendo de suas atividades”, de Debret; “Mulata”, de Di Cavalcanti.
muito interessante seus conteúdos gostei muito deles. Parabéns 🙂
Ótimo artigo. Quanto ao programa, acho intetessante assistir primeiro, observar se ele se dirige apenas as mulheres negras ou retrata mulheres em geral, se reforçará ou não o preconceito. Não assisti, nem assistirei a série, mas já a considero ótima por estar sendo objeto de tanta reflexão, debate e diálogo a respeito do tema. Olha só vc, que artigo bem feito. E as atrizes? Lindas, vão dar um show…
Excelente artigo!
Parabéns!
Parabenizo-a pela determinação de reforçar seu ponto de vista, que é relevante por ser a autora do texto. Além do mais, responder a críticas é saudável…
Muito bem, seguirei a sugestão de reler o artigo com “outros olhos”. Talvez uma segunda leitura permita interpretá-lo de forma diferente, e com isto mudar a opinião.
Também agradeço suas observações e tentarei ser mais clara em meus futuros artigos. Obrigada.
No último parágrafo, em minha opinião, adjetivar de branca a “mulher que reage”, foi um equívoco.
Penso que o certo teria sido: “sou mulher e mereço respeito”. Da forma como foi colocado, realmente não parece ser algo que possa agradar às demais mulheres (negras, mestiças, etc), que ainda hoje são obrigadas a reagir com esta resposta.
É saudável admitir equívocos.
Caro, José. Não tenho nenhum problema em admitir erros quando os cometo. Mas, não é o caso. O sentido do texto – talvez não tenha ficado claro – não é literal. Estou exatamente apontando o nosso passado racista e machista: não são apenas as mulheres brancas que dizem “não sou sua nega” – mesmo porque a realidade atual é bastante diferente daquela dos tempos da escravidão. O que tentei mostrar é que a expressão deriva desta situação: as mulheres brancas e europeias, como está explicitamente dito, mereciam um tratamento diferenciado das outras. Às brancas, galanteios; às negras e mulatas, expressões chulas. Hoje, todas nós – sejamos loiras, morenas, ruivas, negras ou de qualquer que seja o nosso tipo físico – podemos exigir respeito, e assim estaremos reagindo contra esta tradição terrível. Em nenhum momento, quis dizer que apenas a mulher branca pode ou deve reagir. Nunca “adjetivei”, como você disse, a mulher que reage de branca. De forma alguma! Não faria nem mesmo sentido, pois, é exatamente por isso que o seriado causou tanta indignação, por retomar esse conceito do passado. Peço que você releia o artigo, tendo em mente que se trata de uma crítica ao tratamento dado ao tema no seriado. Obrigada.
Reveja o último parágrafo… a expressão “não sou tuas negas” é utilizada por mulheres negras também
Cara Ro, não quis dizer que a expressão é utilizada apenas pelas mulheres brancas. A questão não é essa. O texto quer mostrar que por trás destas palavras existe todo um passado calcado no escravismo e no machismo. Quando dizemos “não sou sua nega”, estamos, mesmo que inconscientemente, rejeitando esta tradição patriarcal que ainda permanece na nossa sociedade.
Excelente comentário de Marcia ! Obrigado pela postagem !