Modas e modos dos escravos

A indumentária dos escravos merece especial atenção, devido às peculiaridades desta importante parcela da população do Brasil Colônia. Houve uma grande diversidade nas roupas e acessórios usadas por eles, que revelam muito sobre o dia a dia da sociedade de então. 

Para a sociedade da época, o responsável pelas vestimentas de um escravo deveria ser sempre o seu “proprietário” ou senhor. O jesuíta italiano João Antônio Andreoni, conhecido pelo pseudônimo André João Antonil, escreveu em 1711, na obra “Cultura e Opulência do Brasil”: “o que pertence ao sustento, vestido e moderação no trabalho, claro está, não se lhes deve negar…(cabe ao senhor cuidar domodo com que se cubra e vista, como pede o estado de servo, não parecendo nú pelas ruas“. Este texto demonstra que o ideal seria que os escravos estivessem sempre vestidos de maneira decente, mas também sem luxos, como seria conveniente à sua condição- aí vemos novamente o forte senso de hierarquia que regia a sociedade de então.

A realidade, porém, era bastante diferente daquele quadro idealizado pelo jesuíta. Homens, mulheres e crianças vinham da África em condições precárias nos infames navios negreiros. Chegavam (muitos morriam na viagem) famintos, doentes, desidratados e envoltos em farrapos sujos. A partir daí, eram vendidos aos colonos. Temos, então, que fazer duas grandes diferenciações quando se fala dos cativos: aqueles que trabalhavam nas lavouras e os que viviam nos incipientes núcleos urbanos. No campo, as roupas geralmente se limitavam a peças de algodão grosseiro. Quase todos andavam descalços. Os servos usavam geralmente apenas uma camisa longa ou, os mais afortunados, calções para cobrir o corpo. Andavam, portanto, seminus. As mulheres usavam saias e blusas muito largas, com o tronco à mostra. Sempre de tecidos rústicos.

A quem trabalhava na casa-grande era permitido usar um guarda-roupa um pouco mais completo. Em favor da decência, vestiam calças e camisas de algodão. As mucamas usavam saias, blusas (hoje talvez chamássemos de batas) e turbantes nas cabeças. Os tecidos podiam ser coloridos e algumas andavam de chinelas. Os cabelos eram muito curtos ou raspados, o que era bem mais higiênico por causa dos piolhos que assolavam TODAS as classes sociais, sem distinção.

O número de escravos que uma pessoa possuía, até o século XIX, era considerado pelos brasileiros um forte indicador de nobreza. Os viajantes europeus que passaram por aqui costumavam ficar espantados com a quantidade de “negros” a serviço dos mais abastados em nossas cidades. Os nobres não faziam qualquer trabalho “mecânico”, como se dizia. Nada era mais imponente do que sair às ruas acompanhado de um cortejo de servos. Portanto, os senhores se preocupavam em mostrar que tinham muitos escravos e, além disso, que podiam manter todos bem vestidos. Assim, pajens e mucamas costumavam vestir roupas à maneira européia: vestidos, calções, casacas, coletes, camisas e chapéus de tecidos finos. Pouquíssimos usavam sapatos ou mesmo chinelos. As mulheres mantinham o hábito dos turbantes e lenços na cabeça.

 Uma cena comum era avistar um senhor ou senhora sendo carregado em liteiras (que podiam ser redes) por dois homens e uma fila de escravos caminhando atrás. Todos usando roupas de tecidos finos, provavelmente já usadas. Quanto mais rico o senhor, mais cativos poderia exibir. Era a lógica da época. Quem não era tão abastado, ostentava como podia. As sinhazinhas também circulavam pela cidade (quando lhes era permitido) com suas mucamas, que seguravam sombrinhas para evitar que o sol lhes escurecesse a delicada pele. As jóias também podiam fazer parte do visual dos cativos.

 Os escravos das cidades, ao contrário do que às vezes pensamos, gozavam de relativa liberdade para os seus negócios. Havia muitos escravos de ganho, que realizavam serviços em troca de pagamento. A maioria precisava entregar parte de seu lucro aos donos, mas, mesmo assim era possível acumular certo capital para comprar a tão sonhada carta de alforria. As atividades destes cativos variavam muito: negras que vendiam doces e outras iguarias, costureiras, bordadeiras, lavadeiras, ferreiros, pedreiros, vendedores, alfaiates (principalmente no século XIX), e outros que competiam com os brancos pobres nos ofícios “mecânicos”. Os negros forros também se incorporam a esta massa de trabalhadores. A prostituição também foi uma alternativa de ganho para as mulheres cativas. 

Com isto, não fica difícil deduzir que muitos escravos tinham um pequeno capital em suas mãos e que podiam também adquirir mercadorias, como roupas e até jóias. O luxo atingiu os cativos de tal maneira que nas Cartas do Senado da Bahia (1699-1710) uma lei poibiu negras (cativas ou forras), e todos os negros e mulatos de usarem sedas e outros tecidos finos, jóias, brocados e adereços de ouro. A lei não foi cumprida, como sempre, mas sua publicação mostra a preocupação dos dirigentes com a quebra de hierarquia que o costume, tão difundido, causava.   

– Márcia Pinna Raspanti

Ver mais  Racismo: será que perdemos a vergonha?

 

Debret: cenas do cotidiano de escravos e senhores.

3 Comentários

  1. LETICIA SILVA
    • Márcia
  2. assis soares

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