Esporte e criminalidade: entre touros e cavalos

Segue mais um trecho do livro – ainda inédito – “História do Crime no Brasil”, organizado pelos historiadores Mary del Priore e Gian Carlo. Neste texto, o autor analisa os conflitos ocorridos nos eventos tauromáquicos e turfísticos promovidos na capital do país no século XIX.

Por Victor Andrade de Melo.

Em oposição às touradas (muito comuns na época), pelo menos a princípio, nos anos 1850 melhor conformava-se na capital do Império um novo fenômeno social: o esporte. O Correio Mercantil, de 15 de junho de 1851, ao descrever com entusiasmo as corridas de cavalos que no Prado Fluminense tiveram lugar, não titubeou em comentar: finalmente surgira algo novo para o bem da cidade “pois que o estado de sua civilização já não tolera mais as barbaras corridas de touros nem as antiquadas cavalhadas de argolinhas”. Sugeria-se que em breve o velho costume da tauromaquia seria substituído pelo turfe.

No decorrer do século, todavia, falharia a profecia do cronista. As touradas manter-se-iam ativas até os anos iniciais do século XX e as corridas de cavalos, entre outros esportes, nem sempre seriam o que deles se esperava como sinal de progresso. O que era para ser símbolo de civilização também virou caso de polícia, inclusive por motivos que não havia nos eventos tauromáquicos: negociatas e trambiques ligados às apostas.

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Nas corridas de cavalos, muitos foram os tumultos, normalmente desencadeados por “tribofes”, termo que ganhou as páginas dos jornais fluminenses nas décadas finais do século XIX. Ainda que as touradas não fossem exatamente um esporte, pelo menos aos olhos dos dias atuais, assim o foram considerada por um bom tempo na cidade do Rio de Janeiro. Além disso, em um cenário em que o fenômeno esportivo ainda se delineava, outras práticas hoje não usuais, como as brigas de galos e o jogo de pelotas, frequentavam as colunas de jornais dedicadas ao tema. Todas essas atividades merecem nossa atenção por os apresentarem indícios sobre as tensões da sociedade de então.

Não trataremos os conflitos como exemplos de barbárie ou atraso, argumentos esgrimidos, na ocasião, por alguns jornalistas e autoridades policiais, mas sim como sinais de uma postura ativa de um setor da população que se constituía como “público”, que adotava um papel mais protagonista de espectador, em uma cidade na qual progressivamente se valorizavam os entretenimentos, se gestava uma cadeia econômica ao redor dos divertimentos, se davam os primeiros passos na construção de uma ideia de cultura de massa.

Excluído da possibilidade formal de influenciar na direção dos espetáculos (já que não integrava os órgãos dirigentes das agremiações), relegado ao pior lugar das instalações esportivas, considerado por alguns como mero coadjuvante, o grande público reagia da forma que era possível. Ao se sentir burlado, encerrava qualquer pretensão de “civilidade” e utilizava os recursos de que dispunha: destruía, simbólica e literalmente, a farsa montada. Delineava-se o que depois denominaremos de “torcida”, nome mais do que adequado para definir quem não consegue ficar quieto nas tribunas em função da emoção das disputas.

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Na verdade, pode até mesmo a alguns parecer estranha essa ligação entre o esporte e o crime. Marcado por um forte discurso moral, considerado como uma prática de gentlemen que com ele se envolveriam por motivos “nobres”, supostamente tendo um fim em si mesmo (seus possíveis contributos a uma nova ética burguesa em construção), o fenômeno esportivo estaria longe dessas deploráveis manifestações do ser humano.

Concretamente, isso assim não ocorre. Volta e meia somos surpreendidos por problemas que rondam o campo esportivo: atletas envolvidos com assassinatos; violência de torcedores; subornos das mais diferentes espécies; envolvimento de dirigentes com escândalos financeiros, entre outros. Recentemente, a Comissão Europeia chegou a demonstrar explícita preocupação e conclamar pela tomada de medidas urgentes para intensificar a luta contra a armação de resultados (ligadas a uma pujante indústria das apostas) e o uso de estruturas esportivas para encobrir crimes relacionados à economia (como lavagem de dinheiro).

Indubitavelmente, um novo glamour fora instituído pelas corridas de cavalos organizadas no Prado Fluminense, especialmente a partir de 1851, quando se tornaram mais frequentes graças a ação de João Guilherme Suckow, um dos mais importantes personagens dos primórdios do turfe brasileiro. O próprio formato da instalação, uma arena onde se podia ver e ser visto, atraía os mais ricos e influentes, que ali podiam se apresentar publicamente, desfilando suas roupas e comportamentos, tanto mais importante porque o Imperador e sua família eram presença constante. Era um espaço adequado para a elite se reconhecer como tal, e para mostrar aos populares quem eram os poderosos.

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Mulheres: essa talvez tenha sido a mais impactante novidade. Os hipódromos eram considerados lugares públicos adequados para elas, tidos como familiares e não suspeitos, como o eram, para alguns, o teatro e outros divertimentos

 

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