Eu me lavo, tu te cobres, nós sujamos: catinga e limpeza

        Comer com as mãos, arrotar, defecar ou urinar publicamente são hábitos banidos de nosso convívio. Porém, as práticas em torno das necessidades fisiológicas, assim como o uso da água e da indumentária percorreram uma longa estrada antes de serem adestrados. E a educação do corpo teve que se dobrar as fórmulas de contenção, contrariando o desejo e os apelos da “natureza”. “Lavado”? Significava “limpo com água ou outro licor”! A palavra higiene, por exemplo, não constava dos dicionários do século XIX, momento em que viajantes estrangeiros passaram por aqui. Nem por isso o tema lhes passou despercebido.

      Casas? Essas eram “repugnantemente sujas”, segundo a inglesa, Maria Graham. Ainda piores, as cozinhas fossem de pobres ou de ricos: “Um compartimento imundo, com chão lamacento, desnivelado, cheio de poças d´água, onde, em lugares diversos armam fogões, formados por três pedras redondas onde pousam as panelas de barro em que cozinham as carnes”, horrorizou-se John Mawe.

      Raramente o interior das habitações era limpo. Quando muito varrido com uma vassoura de bambu. Água no chão? Nunca. As paredes, apenas caiadas, tornavam-se amarelas. A fim de tornar os quartos toleráveis e deles expulsar o mau cheiro, costumava-se queimar plantas odoríferas. Tais odores também mantinham afastados os “atacantes invisíveis”: mosquitos, baratas e outras imundícies. No Colégio jesuíta do Maranhão, os reverendos padres preferiram espalhar vasos com “cheiros”, ou seja, com ervas aromáticas, com o mesmo objetivo, conta-nos J. P. Bettendorf.

        Os penicos estavam em toda a parte e seu conteúdo, sempre fresco, jogado nas ruas e praias. Acostumado aos “gabinetes à inglesa”, o comerciante inglês John Lucock queixava-se que entre as piores inconveniências domésticas havia certa “tina destinada a receber todas as imundícies e refugos da casa, que, nalguns casos, é levada e esvaziada diariamente, noutros, somente uma vez por semana, de acordo com o número de escravos, seu asseio relativo e pontualidade, porém sempre carregado, já sobremodo insuportável”. Até encher, tais perfumadas tinas ficavam isoladas no compartimento chamado “secreta”. Quando chovia, eram esvaziadas nas ruas. O monturo secava sob o sol e varredores de rua, não existiam! Os “esterquilínios” – como os chamou bem-humorado Ernani da Silva Bruno – eram facilmente reconhecidos: se cobriam de uma espécie de cicuta, planta popular conhecida como erva-salsa!

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Jean-Baptiste Debret deixou, ele também, suas impressões sobre os “potes”:

“[…] de barro cozido e de forma oblonga, tem mais o caráter indígena. É em geral de três palmos de altura. Suas funções vergonhosas faz com que esteja sempre escondido num canto do jardim ou do pequeno pátio contíguo à casa, colocado atrás de uma cerca de trepadeiras ou simplesmente escondido por duas ou três taboas apoiadas ao muro. Nas casas mais ricas, ele se dissimula sob um assento de madeira móvel. E nesse esconderijo, aguarda a hora da Ave-Maria para, molemente, balançando à cabeça do negro encarregado desse serviço, ser esvaziado numa praia. Antes da partida é previamente coroado por uma pequena tábua ou uma enorme folha de couve, tampa improvisada que se supõe suficiente para evitar o mau cheiro exalado durante o trajeto”.

       Quartos? Os sobrados costumavam oferecer um para os pais e camarinhas apertadas para as moças. As janelas pouco se abriam e não se expunham ao sol as camas úmidas de suor. Na alcova tinha mosquiteiro, colchão rijo, travesseiros redondos e “excelentes lençóis”. Sinal de que, apesar da sujeira, a roupa branca era valorizada.

       Quanto aos habitantes, a maioria deles deambulava pelas ruas vestidos com “casacas pretas, velhas e coçadas”. As calças, nos joelhos eram atadas com fivelas de brilhantes-fantasia, meias de algodão nacional, e a cabeça coberta com “uma peruca empoada sobre que punham um enorme chapéu armado já sebento, geralmente ornado de um tope”. O número de pessoas de aparência respeitável, segundo Luccok, era diminuto. E pior, o que se mostrava na rua, não era realidade portas adentro. Para fazer visitas, os homens enfiavam-se em tricórnios e grudavam fivelas aos sapatos. Mas em casa mostravam-se “com barba de vários dias e os cabelos pretos em franco desalinho, embora besuntados de gordura e sem roupa alguma sobre sua camisa de algodão. É verdade que esse traje é bem feito, ornamentado com trabalhos de agulha, especialmente sobre o peito; mas frequentemente o põem de peito aberto e com as mangas arregaçadas até os ombros”. Curtas, as calças deixavam as pernas nuas e “os pés metidos em tamancas. Nada disso é lá muito correto”, ponderava.

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     O hábito de estar semivestido era também observado na hora das refeições: tiravam sapatos, meias e outras “peças que o calor tornasse opressivas, guardando apenas o traje que a decência requer”, reportou Luccok. Garfos e facas começavam a serem usados, embora fossem de modelo antigo, pequeno e desaparelhado:

“Comem muito e com grande avidez e, apesar de embebidos em sua tarefa ainda acham tempo para fazer grande bulha. A altura da mesa faz com que o prato chegue ao nível do queixo; cada qual espalha seus cotovelos ao redor e colocando o pulso junto à beirada do prato, faz com que por meio de um movimento hábil, o conteúdo todo se lhe despeje na boca. Por outros motivos além deste, não há grande limpeza nem boas maneiras, durante a refeição; os pratos não são trocados […] por outro lado, os dedos são usados com tanta frequência quanto o próprio garfo. Considera-se como prova incontestável de amizade alguém comer do prato do seu vizinho […] antes do final da refeição, todos se tornam barulhentos, exagera-se a gesticulação e despedem punhadas no ar, de faca ou garfo, de tal maneira que um estrangeiro pasma que olhos, narizes e faces escapem ilesos”.

Registrou para concluir mais à frente:

“É de observação vulgar que os hábitos pouco limpos costumam seguir de perto a ignorância […] Poucos vocábulos foram tão empregados quanto sujeira, imundície e expressões sinônimas, mas não é possível fazer-se de outro modo se quisermos de fato representar a situação real e geral do país e de seus habitantes.”

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         Debret concordaria, pois ficou chocado em constatar que pequenos comerciantes ou homens abastados comiam “com os cotovelos fincados à mesa, enquanto sua mulher com o prato sobre os joelhos, sentada em sua marquesa com as pernas cruzadas, à moda oriental, comia com as mãos, bem como seus filhos ainda pequenos que, deitados sobre a barriga ou de cócoras nas esteiras, se enlambuzavam a vontade com “a pasta comida nas mãos”!

        Guardanapos? Coisa rara, mesmo na casa do governador. Em jantar que lhe foi oferecido, Nicolas de La Caille ironizou: “Na ocasião, deram-nos uns guardanapos quadrados, pequenos e sujos. E esse senhor gabava-se de ser muito rico e especialista na arte de bem viver”.

_ Mary del Priore. “História da Gente Brasileira: Colônia”. Editora LeYa, 2016.

chafariz

Escravos carregavam os dejetos para fora da cidade (Chafariz, Debret). 

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