Brasil Império: os mimos e a “falta de limites” dos pequenos brasileiros

Os viajantes estrangeiros não cessaram de descrever o demasiado zelo com que, numa sociedade pobre e escravista, os adultos tratavam as crianças. O exemplo vinha de cima. Ao voltar a Portugal, D. Pedro I, mulherengo e instável não abandonou os filhos. Escrevia-lhes muito, lamentando as saudades e insistindo no amor que lhes tinha.

As cartas desesperadas de mães, mesmo as escravas analfabetas, tentando impedir que seus rebentos partissem como grumetes para a guerra do Paraguai, sublinham a dependência e os sentimentos que se estabeleciam, entre umas e outros. Nos dias de hoje, educadores e psicólogos perguntam-se, atônitos, de onde vem o excesso de mimos e a “falta de limites” da criança brasileira já definida, segundo os resmungos de um europeu de passagem pelo Brasil, em 1886, como “pior do que um mosquito hostil”.

Se, como já dizia mestre Gilberto Freyre, “é o menino que revela o homem” resultamos numa realidade em que algumas constatações precisam ser sublinhadas: a primeira delas aponta para uma sociedade, certamente injusta na distribuição de suas riquezas, avara, no que diz respeito ao acesso à educação para todos, vincada pelas marcas do escravismo. Como fazer uma criança obedecer a um adulto como queria uma professora alemã, que vai, na segunda metade do século XIX, às fazendas do vale do Paraíba, ensinar os filhos dos fazendeiros de café, quando esses distribuem ordens e gritos entre os seus escravos? E não eram apenas as crianças brancas que possuíam escravos. As crianças mulatas ou negras forras, uma vez seus pais integrados ao movimento de mobilidade social que teve lugar na primeira metade do século XVIII, tiveram eles também seus escravos. Muitas vezes, seus próprios parentes ou até meios irmãos!

Ver mais  O Horror ao Trabalho

Na sociedade escravista ao contrário do que supunham os estrangeiros, criança mandava e o adulto escravo obedecia. A dicotomia dessa sociedade, sociedade dividida entre senhores e escravos, gerou outras impressionantes distorções, até hoje presentes. Tomemos o tão discutido exemplo do trabalho infantil. Dos escravos desembarcados no mercado do Valongo, no Rio de Janeiro do início do século XIX, 4% eram crianças. A partir dos quatro anos, muitas delas trabalhavam com os pais ou sozinhas, pois perder-se de seus genitores era coisa comum. Aos 12 anos, o valor de mercado das crianças já tinha dobrado.

E por quê? Pois se considerava que seu adestramento estava concluído e nas listas dos inventários já aparecem com sua designação estabelecida: Chico “roça”, Ana “mucama”, transformados em pequenas e precoces maquinas de trabalho. Quando da abolição da escravidão, as crianças e adolescentes moradores de antigas senzalas, continuaram a trabalhar nas fazendas de cana de Pernambuco. Tinham a mesma idade de seus avós, quando esses começaram: entre 7 e 14 anos e até hoje, ainda cortando cana, continuam despossuídas das condições básicas de alimentação, moradia, saúde, educação. O trabalho doméstico entre as meninas também era constante.

No que diz respeito às ideias sobre escolarização, tudo indica que tenhamos herdado das europeias. As cartas jesuíticas refletem exatamente este espírito ao falar das crianças como páginas brancas onde tudo era possível escrever. Mais: sua natureza era considerada má, talhada sob medida para o erro, a falta. Suas próprias representações, visões espontâneas e concepções não eram dignas de qualquer interesse. Pior, elas atrapalhavam a aquisição do conhecimento. Nas escolas destinadas às classes desfavorecidas prevaleciam as práticas e concepções pedagógicas coercitivas. O aparelho escolar do século XIX não modificou a ambiguidade de uma escola praticando simultaneamente um adestramento, para os pobres, e uma formação de conhecimento, potencialmente emancipadora para os ricos.

Ver mais  O silicone e outros atifícios

Só para os ricos, pois os remediados continuavam sem remédio! Um exemplo, ao se aventurar pelos sertões de Cachoeira, Camisão e Orobó na Bahia, recolhendo espécimes vegetais, Antônio Muniz de Souza se deparou com o triste quadro em que ficou a educação depois da expulsão dos jesuítas. Ele contou:

“É desgraçada coisa ver as aulas das povoações e vilas pequenas preenchidas pela maior parte de homens foragidos e até facinorosa, que apenas conhecem caracteres de nosso alfabeto […] Faz lástima ver seu comportamento para com os discípulos: só o seu aspecto os horroriza; e, sobretudo, o péssimo estilo que eles adotam de educar a mocidade à força de pancadas e rigorosos castigos, faz com que esta aterrada não só conceba ódio às letras, mas também fuja e até prefira morrer a aprender com semelhantes pedagogos, cruéis e estúpidos […] No Rio de Janeiro, vi um menino sem uma mão, pedindo esmolas, na portaria do convento Santo Antônio, e soube que aquele aleijão procedera de semelhante abuso”.

debret

Jantar em casa brasileira, de Debret

Tais contestações se faziam numa época em que diversos dirigentes do Estado acreditavam que a educação era capaz de produzir riquezas, pois incutiria na criança “o amor ao trabalho”. Sobretudo, as crianças pobres, negras e mulatas ou jovens imigrantes italianos e espanhóis que incomodavam as autoridades policiais e as classes dirigentes. Na década de 1870, muitos dos pequenos “vagabundos” que circulavam nos centros urbanos foram encaminhados aos Arsenais da Marinha e da Guerra ou a fazendas do interior para se educarem por meio do aprendizado de um ofício. Até Congressos Agrícolas discutiram na Corte ou em Recife, a necessidade de unir o ensino primário ao trabalho agrícola. A falta de braços justificava a preocupação. Além do mais, educar significará prevenir a criminalidade e “desordens sociais”. Até no Maranhão foi construída uma Casa dos Educandos Artífices, modelo de estabelecimento para “os desvalidos da sorte, a fim de dar uma resposta ao problema. Baseada num esquema de disciplina e obediência militar instruía profissionalmente meninos, por meio de oficinas de ensino de primeiras letras, mecânica e artes, pedreiro, carapina, alfaiataria, sapataria, entre outras competências

Ver mais  A escravidão, os castigos e a moral cristã

Sim. Na segunda metade do século XIX havia uma intenção de melhorar a educação. Sonhava-se em construir uma nação na qual as hierarquias permaneceriam resguardadas sob o manto de uma formação elementar comum. Mas, só a intenção…

  • Texto de Mary del Priore.
1899

Imagem de 1899: criança mandava e o adulto escravo obedecia

 

 

Deixe uma resposta