Por Paulo Rezzutti.
Por entre árvores carregadas de frutas e com folhagens exuberantes, exibiam-se araras e papagaios e gorjeavam diversas outras aves brasileiras. Macacos e saguis corriam dos troncos ao solo e de volta aos seus esconderijos. As construções eram de troncos toscos, cobertas de palha, folhas e galhos. Ao redor, uma paliçada servia de muralha protetora. Por detrás delas, estavam cerca de trezentos homens, de cabeleiras revoltas, bronzeados e nus, ou melhor, “vestidos de inocência”, como exclamou Cristóvão Colombo em seu primeiro contato com os indígenas da América.
Os “brasileiros” traziam seus rostos enfeitados, suas faces e orelhas furadas e entrelaçadas de pedras longas nas cores branca e verde. Uns atiravam com o arco e flecha tentando acertar aves e pequenos animais, outros corriam atrás dos macacos.
Mais ao longe, um grupo cortava madeira, que trocava com marinheiros franceses por machados, foices e rastelos de ferro. A madeira era transportada até um grande navio de dois mastros que ostentava o pavilhão e os brasões da França. De repente, um afrontamento: vindos do meio da mata, surgiram os Tabajaras, que começaram o combate com os Tupinambás. Estes acabaram por vencer a pequena batalha, invadiram e incendiaram o acampamento de seus inimigos.
Essa cena toda, uma constante no primeiro século após a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, não aconteceu em solo pátrio, e sim na França, precisamente na cidade de Rouen, em outubro de 1550.
De brasileiros mesmo, havia cinquenta índios, provavelmente todos Tupinambás. O brasilianista Ferdinand Denis acreditava que indígenas brasileiros teriam vindo de tribos fixadas temporariamente entre Pernambuco e São Salvador. Talvez até de Itamaracá, onde os franceses tinham um posto para a extração de madeira do Brasil. O restante do “elenco” era composto por marinheiros e prostitutas. O acontecimento fazia parte da “entrada” do rei Henrique II e de sua esposa, Catarina de Médici, na cidade de Rouen.
As entradas eram festas comuns na época, como as cavalhadas e os torneios. Eram cortejos e desfiles triunfais em homenagem a alguém muito importante que chegava a uma cidade. Recentemente, o rei francês havia sido recebido em Lyon com uma entrada suntuosa, e a cidade de Rouen não mediu esforços para eclipsá-la. Assim, inseriu em suas comemorações um espetáculo para mostrar ao rei e toda a sua corte, incluindo o embaixador português na França, a vida e os hábitos dos habitantes do Brasil.
O local onde se deu a encenação, um espaço de aproximadamente duzentos por trinta e cinco metros, era uma campina localizada entre as fortificações da cidade de Rouen e o Rio Sena, onde a embarcação que simulava o tráfico do pau-brasil estava ancorada.
O historiador Jean Marcel Carvalho França, da UNESP, explica que essa “festa brasílica” foi organizada por “comerciantes e armadores de Rouen”. O propósito da festa era “despertar no monarca o interesse pela colonização da América Austral, daí a presença de índios brasileiros, mas, sobretudo das riquezas do Brasil: pau-brasil, animais exóticos, ervas potencialmente viáveis para o comércio etc.”
O evento mostrando a relação dos marinheiros franceses com nossos índios e o tráfico do pau-brasil, somado à pressão dos comerciantes normandos, a necessidade de se desenvolver o recém-criado porto de Le Havre, o desejo de aumentar a frota francesa e o interesse pelos negócios de além-mar, acabaram por levar a França a colonizar a região da baia de Guanabara, no empreendimento chamado “França Antártica”, que durou de 1555 a 1560.
Apesar de o Tratado de Tordesilhas, sob as bênçãos do Papa, ter dividido o “Novo Mundo”, bem como suas riquezas, entre a Espanha e Portugal, os demais países da Europa não tinham qualquer pretensão de ficar longe do butim. Em 1540, o então rei da França, Francisco I, disse a respeito: “Gostaria de ver a cláusula do testamento de Adão que me excluiu dessa partilha”.
Um dos principais produtos traficados pelos franceses era o pau-brasil, famoso pela sua resistência na construção. As peças de marcenaria polidas realizadas com essa madeira também eram bastante apreciadas. Porém a maior procura era devida ao corante vermelho que se conseguia extrair dela, que servia para tingir algodão e lã. O “quintal” do produto, o equivalente a cerca de 60 quilos, custava, por volta de 1530, seis ducados. Com cada ducado contendo 3,5 gramas de ouro, o valor hoje seria de aproximadamente R$ 2.068,00. Mas não era apenas pelo pau-brasil que os franceses e outros europeus vinham ao Brasil. Peles de animais estavam cotadas a três ducados, papagaios que falassem francês valiam seis.
Para o historiador Luíz Fabiano de Freitas Tavares, autor do livro Da Guanabara ao Sena, “a postura portuguesa em relação à presença francesa no litoral do Brasil sempre foi de reafirmar a legitimidade do tratado de Tordesilhas”. A situação diplomática era complicada entre os dois países, pois “Portugal e França era aliados no plano europeu e rivais da coroa dos Habsburgos na Espanha. Assim, todas as posturas tomadas tendiam à ambiguidade”.
Um caso que ilustra bem a postura ambígua de Portugal com a França é a primeira batalha naval ocorrida no Brasil, em 1527. Seguindo as ordens do rei português de proteger e guardar as costas brasileiras dos piratas europeus, o governador do Brasil, Cristóvão Jacques, e sua esquadra deram com uma frota francesa no Recôncavo Baiano. A esquadra portuguesa derrotou os franceses, e Cristóvão Jacques não teve clemência: matou os que se renderam. Alguns foram enforcados, outros, enterrados na areia e alvejados por tiros e flechas. Um pequeno grupo conseguiu escapar e, no retorno à Europa, relatou o caso da barbárie. O rei francês, Francisco I, deu início a uma longa disputa diplomática com D. João III de Portugal, que acabou por levar à destituição do governador brasileiro.
Outros índios na França
Ao contrário dos portugueses, “donos da terra”, que buscavam colonizá-la, procuravam aprisionar os índios e escravizá-los, os franceses “exploraram mais intensamente a amizade e a curiosidade indígenas”, como explica o professor Carvalho França, que adverte: “É preciso estar atento, no entanto, ao fato de que os franceses não colonizaram a região, é a colonização, o implantar-se na terra, que cria animosidades”.
Com a camaradagem que os marinheiros da França conquistaram dos nossos índios e a quantidade de navios realizando o tráfico, era comum a ida e vinda dos nativos para o velho continente, inclusive em Rouen. Já em 1509, por exemplo, sete índios brasileiros foram levados para lá pelo capitão Thomas Aubert, membro da frota do poderoso armador Jean Ango. Em 1512, apareceu uma descrição do desfile desses brasileiros pela cidade: “Eram originários dessa ilha que chamam Novo Mundo, e chegaram a Rouen com a sua barca, os seus adornos e as suas armas. Têm a cor carregada e os lábios grossos, seus rostos são recortados por cicatrizes (…) Não têm pelos nem barba, nem no púbis, nem em qualquer outra parte do corpo, salvo os cabelos e sobrancelhas”. Pasmo, o cronista continua: “Falam pela boca”.
Um dos casos mais famosos de brasileiros na França, sem dúvida, foi o de Caramuru e Paraguaçu. O português Diogo Álvares Correia, náufrago português que acabou se estabelecendo junto aos índios do litoral do Nordeste e ficou conhecido pela alcunha de Caramuru, acabou se tornando aliado dos franceses e, junto com sua companheira, a índia Paraguaçu, partiu para a França. Paraguaçu teria sido tratada como uma princesa brasileira e foi batizada na cidade de Saint-Malo em 30 de julho de 1528 com o nome de Catarina do Brasil, em homenagem a uma de suas madrinhas, Catarina de Granges, esposa do navegador Jacques Cartier, explorador do Canadá.
Ambos, Caramuru e Paraguaçu, retornaram para o Brasil, estabelecendo-se onde hoje é a cidade de Salvador. A índia acabou seus dias como uma velhinha devota, falecendo longeva e deixando parte de seus bens para a igreja.
A lembrança dos índios brasileiros pode ser observada até hoje na região da Normandia. Na cidade de Dieppe, na igreja gótica de Saint Jacques, encontra-se a “frisa dos selvagens”. Gravada na pedra, podemos ver a representação típica de nossos índios, homens, mulheres e crianças, com plumas enfeitando suas cabeças e a cintura das mulheres, elementos como arcos e flechas, além de papagaios que complementam as cenas. Outro lugar na região em que aparecem nossos indígenas é no solar que pertenceu ao armador Jean Ango, em Varengeville. No pátio interno da construção, medalhões em pedra exibem os brasileiros. Uma pousada em Rouen, situada na rua Malpalu, 17, e demolida em 1837, chamava-se L’Isle du Brésil. Possuía na fachada um grande baixo-relevo em madeira, que hoje se encontra no Museu de Antiguidades da cidade. Nele, podemos observar todo o processo de extração e transporte do pau-brasil com o apoio dos indígena.