Gente Brasileira: corrupção, ostentação e desigualdade

          Se são tempos de falar do presente e de nós mesmos, o que é a gente brasileira? Qual o impacto de tantas mudanças em seu cotidiano? Hoje, ela acorda e consulta o celular. Engrossa as filas nas estações de metrô e ônibus, no trânsito e frente aos elevadores de prédios cada vez mais altos. No caminho do trabalho e na volta para casa, de carro ou em transporte público, teme a violência que invadiu as ruas: homicídios e latrocínios. Ela trabalha em serviços e conhece o computador. Sabe que está na “era da informação e conhecimento”, mas, ainda reluta em investir em conteúdo, optando pelo supérfluo e o ostentatório. Sustentabilidade? É para os outros. E embora saiba que acabou a era dos combustíveis fósseis, quer comprar automóvel, alegando, com razão, que o transporte coletivo não funciona. Em casa, assiste a TV, engolindo o lixo nosso de cada dia, lixo que colabora para o arcaísmo. De bermudas e chinelo, usa o cyber-café que cobra 1,00 real para ver pornografia e jogar Candy-Crush. Nos finais de semana, consome e se endivida no cartão de crédito. Esgota serviços, lazer, viagens. Prefere se informar sobre a vida do artista ou da celebridade, em vez daquela do político.

            A gente brasileira sabe que habita um país economicamente rico. O Brasil ganhou um tecido produtivo capaz de fabricar de aviões a automóveis, de petroquímica a farmacêutica, de recursos naturais que vão do petróleo a diversas commodities e conta com a presença das mais importantes empresas estrangeiras aí instaladas. Cresceu, também, o acesso ao ensino técnico e superior e políticas públicas de inclusão racial e de gênero mostraram o rosto. Mas algo vai mal. Marcos Alonso fala desse sentimento de insatisfação: “Após quase sete décadas de vida demorei, mas, finalmente perdi a inocência em acreditar que poderíamos ter chegado ao momento em que o Brasil seria aquele “país do futuro” que sempre foi propagado pelos que vieram antes de mim. Assisto com tristeza, mas compreendo a revoada de jovens talentosos que buscam outros países sabedores que no Brasil as chances de crescimento profissional são remotas. Reconheço que não há retorno dado pela administração pública aos impostos pagos pelos cidadãos e que a segurança pública, a saúde pública e a educação pública são extremamente precárias”.

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Insatisfação e sensação de que, apesar de tantas mudanças, nos faz crer que não saímos do lugar, como registrou, em finais de 1999, Affonso Romano de Sant´Anna: “Lendo Minha Formação de Joaquim Nabuco – essa sensação de que as coisas antigas estão cada vez mais próximas. Deixaram de ser do século passado e são de ontem, de agora. O passado cada vez fica mais vivo, sobretudo a história. A barreira do tempo passado se desfaz, 1870 parece-se a 1970 que já virou ontem, século passado”.
É sabido. O Brasil é rico, mas, é também, “um deserto de homens e de ideias”, como já disse o gaúcho Oswaldo Aranha, sobre os nossos políticos. E como visto neste livro, desde o governo JK, passando pelo regime militar aos governos de Sarney, Collor, FHC, Lula e Dilma Roussef e Michel Temer a corrupção minou a classe, a representação e até mesmo a ideia de partidos políticos, apesar do robustecimento democrático. A toxicidade do Executivo faz, infelizmente parte de nossa história contemporânea. Ela está sendo registrada e os historiadores não deixarão esquecer seus responsáveis. Se antes o clientelismo dos coronéis visava o poder político, hoje, ele visa o dinheiro. Os números da corrupção nas últimas décadas foram ultrajantes. Sempre entre os melhor colocados entre os países mais corruptos do mundo, tivemos em nossa classe política um sorvedouro de roubos, malfeitos e nepotismo sem igual em quinhentos anos. “Roubo, mas faço”, lema de décadas, não é mais suportável.

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O cientista político José Murilo de Carvalho explica que “o crescimento da máquina estatal ampliou práticas clientelísticas e patrimoniais e aumentou o predomínio do Executivo sobre o Legislativo. Outro fator negativo foi a construção de Brasília que libertou congressistas e executivos do controle das ruas, ampliando a sensação de impunidade. Brasília tornou-se uma corte corrupta e corruptora”. E ele crava: “a ditadura protegeu com arbítrio a atuação de governantes e interrompeu a formação de uma nova elite dentro de padrões republicanos”.

Mas e a sociedade, qual a parte dela nisso? Afinal, vivemos num regime democrático. Por que razão elegemos políticos que beiram à marginalidade e que, com honrosas exceções, esquecem de fazer políticas de excelência na saúde e educação? Que ignoram os níveis de violência de que é vítima a sociedade? Que se recusam a pensar na desigualdade social que machuca o país? A resposta talvez se encontre na dupla moral que nos acompanha desde o início da colonização. Na ambiguidade em relação às regras e que, como lembra o historiador Leonardo Avritzer, reduz-se a ética que privilegia as relações domésticas e familiares, fechando os olhos para o que é público. Ele a denomina “familismo amoral”.

O familismo amoral faz parte das tais “coisas antigas” que atravessam por séculos a nossa história. Coisas que nos fazem pensar que o passado não passou. Que, como disse o jornalista Millor Fernandes, “O Brasil tem um enorme passado pela frente”. Que ele, esse passado nos aprisiona e se cola a nossa pele. Na rua, liberais e tolerantes, progressistas e modernos. Em casa, antissemitas, racistas, homofóbicos e machistas. Essa fisionomia bifronte se vê claramente nos comportamentos diários que nós mesmos – não só os políticos -, temos: a propina para amaciar a multa, a buzina estridente na porta do hospital, as piadas de baixo nível envolvendo minorias, a crença não confessa de que “bandido bom é bandido morto”, hábitos de incivilidade como falar palavrão aos berros, avançar faróis vermelhos, jogar lixo pela janela.

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Pois, também somos assim. Não conseguimos roubar tanto como o fazem os políticos, mas temos uma ética muito maleável. Roubamos no miúdo, por meio de pequenas atitudes que se querem discretas. Nosso “jeitinho” é uma maneira boa-praça de encarar e de viver o “familismo amoral”. E ele é nefasto, pois como bem diz o antropólogo Roberto da Matta, ele se confunde com corrupção, pois desiguala o que deveria ser tratado com igualdade. “Os chefes passam por cima da lei porque a encarnam. Já certas pessoas são implacavelmente colocadas debaixo dela. O que faz com que a lei seja desmoralizada e quem a cumpre, estigmatizado como otário ou subcidadão”.

  • Texto de Mary del Priore.
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“Histórias da Gente Brasileira: República 1950-2000 (vol.4), Editora Leya, 2018

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