Retratos do Brasil: a babá e a manifestação

           Causou enorme polêmica a foto de um casal, a caminho das manifestações pró-impeachment, em que a família vestia verde e amarelo e a babá, de branco, levava as duas crianças devidamente produzidas para o evento. A imagem viralizou e causou reações indignadas, pois seria um retrato de um país racista e de uma classe dominante arrogante. O homem da foto defendeu-se dizendo que pagava todos os direitos trabalhistas da funcionária e que ela estaria recebendo em dobro (como determina a lei) para trabalhar em um domingo. Imediatamente, muitos vieram em sua defesa, com o argumento de que ser babá é uma profissão digna e que não havia nada demais na foto, a não ser “mimimi esquerdista“. Mais do que condenar ou defender qualquer um dos envolvidos, podemos levar a discussão para o nível simbólico. O que toda essa celeuma diz sobre a sociedade brasileira?

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          Em primeiro lugar, acredito que a foto nos incomoda por alguma razão. Se fosse algo tão corriqueiro, não teria causado tanto impacto. Em época de polarização política, muitos temas importantes acabam sendo reduzidos ao campo falsamente “ideológico”. A mim, me chamou atenção, logo que pus os olhos na imagem, o fato dos pais terceirizarem os cuidados com os filhos em um evento como esse. Ora, levar as crianças em manifestações é importante para incutir nos pequenos, desde cedo, a ideia de cidadania e participação política. A iniciativa é louvável, por isso, causa estranheza deixá-los com a babá, em vez interagir com eles.

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           É difícil não fazer relações com o passado, principalmente para nós, historiadores. O Brasil herdou de Portugal o horror aos trabalhos “mecânicos” ou seja, qualquer atividade manual. Nos tempos coloniais, os escravos “de dentro” cuidavam dos afazeres domésticos, inclusive cuidando das crianças e até amamentando-as. “Quando marido e mulher saem de casa, seja para visitarem uma família, seja para irem a alguma festa, levam consigo todos os filhos, cada um com a sua ama”, dizia o médico Francisco de Melo Franco, em Tratado para a educação física dos meninos para uso da nação portuguesa, Lisboa, Academia Real de Ciências, 1790.

          Era muito comum a presença de amas de leite, tanto em Portugal quanto no Brasil, apesar dos ataques ao costume, por parte da Igreja e dos médicos. “A amamentação passou a ser um meio de vida para mulheres pobres na Europa Ocidental, enquanto as mulheres de elite se revezavam em torno de fórmulas para conservar a beleza de seus seios”, conta Mary del Priore, em “Ao Sul do Corpo”. No Brasil, continua a historiadora, segundo os trabalhos pioneiros de Miriam Moreira Leite, a amamentação foi no século XIX assunto de viajantes estrangeiros na redação de seus diários de viagem. “Nesses textos, fica clara a preocupação de observar e, indiretamente, comparar hábitos de seus países de origem com o Brasil. Sublinha-se nas amas de leite escravas e negras, pardas e mulatas desde o seu ‘luxo insolente’ ao abandono a que são obrigadas a deixar seus próprios filhos”.

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         Ainda hoje, as empregadas domésticas parecem ser invisíveis, até mesmo no discurso de alguns grupos feministas. Houve avanços, sem dúvida, principalmente no que se refere aos direitos trabalhistas, mas ainda há muito por fazer nas Ciências Sociais. “A inclusão na história contemporânea de um olhar sobre os regimes de servilismo doméstico é um exercício de desocultação necessário, porque a sociedade luso-brasileira transformou a figura da criada em um anátema. A memória social ocultou o fato de estarmos perante uma massa de trabalhadores – análogas aos regimes de dominação ligados ao tráfico e à escravatura (…)”, afirma Inês Brasão, na Revista de História da Biblioteca Nacional, nº 113, no artigo “Da porta para dentro”. Muitos autores começam a abordar aspectos da vida dessas mulheres que, por vezes, precisam negligenciar seus filhos para criar filhos de famílias abastadas. No cinema, “Que horas ela volta”, com Regina Casé, discutiu a questão.

          Voltemos à imagem da família nas manifestações. Todos de verde e amarelo, com exceção da babá de uniforme branco. Isso nos faz questionar: ela queria participar dos protestos? não queria? era indiferente? estava apenas fazendo o seu trabalho? Não sabemos, porque apenas o patrão se pronunciou sobre o caso. Não ouvimos a voz da babá. Será que a fizeram ir de branco para marcar mais claramente as diferenças de classe, deixar bem claro quem é quem, distinguir o patrão do empregado? Não vejo nada demais em usar uniforme, muitas categorias o fazem. No trabalho doméstico não há uma regra única, depende da negociação entre patrões e empregados. Seria essa moça uma das que prefere usar branco? Também não sabemos, e isso é bastante sintomático. Encontrei apenas uma reportagem em que ela era ouvida de forma bem superficial, o que ela deixou claro é que se sentiu incomodada com a fama inesperada.

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            O episódio me faz voltar ao passado, mais uma vez. Nos tempos coloniais, havia regras rígidas de vestuário (que constantemente eram burladas). Os escravos não podiam usar sapatos, nem joias, nem tecidos finos. A elite não economizava no luxo na hora de sair à rua: tecidos, joias, acessórios, liteiras e muitos escravos. Era assim que o fidalgo, ou pretenso fidalgo, se diferenciava da “arraia-miúda”, do populacho.  As aparências eram muito importantes na época colonial, para manter uma ilusória harmonia social.

Uma imagem pode levar a muitas reflexões e pode nos ajudar a entender nossa sociedade. Mais do que criticar ou atacar quem quer que seja, acho que devemos aproveitar esse episódio para isso. A fotografia, sem dúvida, mostrou um flash da nossa realidade que não gostamos de ver. E a História nos faz ver os fatos sob outras perspectivas… – Texto de Márcia Pinna Raspanti.

Após a publicação desse texto, finalmente, a babá Angélica foi ouvida pela imprensa.  Confira o depoimento dela:

Angélica

 

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Fotos: Revista Fórum. Acima, foto de uma ama no século XIX, do acervo do Instituto Moreira Salles.

16 Comentários

  1. Leandro Piazzon Corrêa
    • Márcia
  2. Natália Belizario Silva
  3. LANA
  4. Rose Khusala
    • Márcia
  5. Elaine Marcelina
  6. Kayo Fonseca
    • Márcia
  7. César Jeansen Brito
    • Márcia
    • Márcia
  8. Marcia Miguel

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