Por Márcia Pinna Raspanti.
O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, eu quero o teu amor
A famosa marchinha carnavalesca de Lamartine Babo, composta na década de 30, está sendo boicotada por vários blocos de Carnaval, por ser considerada racista. Outros clássicos, como “Nega do Cabelo Duro” (1940) de David Nasser e Rubens Soares, “Maria Sapatão” (1980) e “Cabeleira do Zezé” (1963), de João Roberto Kelly, e “Índio Quer Apito” (1960), de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, também estão no centro dessa polêmica, por serem vistas como ofensivas a determinados grupos. A controvérsia está esquentando os debates nas redes sociais, nas mesas dos bares e entre os próprios foliões. Acusa-se uma suposta “ditadura do politicamente correto” de estar acabando com a diversão carnavalesca, ao tentar excluir o teor irreverente da festa.
É inegável que a linguagem está sempre em movimento, assim como as práticas culturais: o que era natural no início do século passado, hoje pode ser ofensivo ou inadequado. A forma como lidávamos com questões raciais, sexuais e até com o conceito de beleza não é a mesma. Portanto, é compreensível que certas práticas mais antigas incomodem a sensibilidade de muitos de nós, no século XXI. Por outro lado, muitos argumentam que o Carnaval é uma festa pagã, marcada pela inversão da hierarquia e da ordem vigentes, representando um período em que as regras devem ser deixadas de lado. “A origem do Carnaval se perde na noite dos tempos. É tão antiga, que as religiões históricas nascidas às margens do Mediterrâneo tiveram que fazer, cada qual a sua maneira, um lugar para tais festividades, inscrevendo-as no seu calendário. O cristianismo associou o Carnaval à Quaresma, logo, aos festejos que antecediam a Páscoa”, conta Mary del Priore.
O Cristianismo tentou, de todas as formas, normatizar a festa “da carne”, proibindo máscaras, fantasias e outros traços considerados pagãos. Mas, ao contrário do que os religiosos esperavam, os festejos carnavalescos se tornaram cada vez mais populares. Bebedeira, gulodice, danças lascivas, fantasias, sexo, excessos de todos os tipos – não houve jeito de transformar o Carnaval em uma comemoração nos moldes cristãos. O mais perigoso era, sem dúvida, o caráter de inversão, a quebra da hierarquia, a ideia de que tudo era permitido. E agora, será possível transformá-lo em uma festa “politicamente correta”?
Acho que devemos levar em consideração que essas marchinhas são manifestações dos nossos preconceitos cotidianos, que se apresentam, muitas vezes, de forma mais sutil. São retratos de épocas passadas – e documentos históricos importantes, acredito – mas também são reflexos do lado mais feio de nossa sociedade, disfarçados de “irreverência” ou “malícia”. Não é possível, nem desejável, apagar o passado, mas é extremamente saudável refletir sobre o presente. Hoje, quem se sente incomodado com determinados comportamentos pode falar abertamente sobre eles e está conseguindo se fazer ouvir. Contudo, o fato é que nossa sociedade foi forjada na escravidão e no patriarcalismo, e não há como negar ou ignorar esse passado.
Algumas músicas estão sendo boicotadas simplesmente por conterem o termo “mulata”, hoje visto como ofensivo. Raphael Bluteau, em seu Dicionário Portuguez e Latino, do início do século XVIII, definiu o vocábulo da seguinte forma: filho ou filha de preto com branca, ou às avessas, ou de mulato com branca, até certo grao. Filho de cavalo, e burra. Sem dúvida, não era uma definição positiva e reflete a sociedade de então. No Brasil Colônia, a palavra “mulata” tinha forte conotação sexual (ideia que persistiu por muito tempo). Vale lembrar o ditado corrente na época, que hoje fere nossos ouvidos: “Branca para casar, negra para trabalhar, mulata para f…”. O jesuíta João Antônio Andreoni, em 1711, destacava o mal que as mulatas desinquietas podiam trazer aos “homens bons”, pois elas conseguiam ouro e liberdade usando seus corpos. E aqui esbarramos em outro tema importante em tempos de Carnaval, que é o assédio…
Então, podemos entender a razão pela qual tal palavra é rejeitada nos dias atuais. Muitos grupos feministas estão destacando que o Carnaval não justifica o assédio às mulheres, nem o abuso. E ainda se ouve muita gente dizendo que se as mulheres querem respeito, deveriam “se dar ao respeito”, evitando os excessos carnavalescos. Triste herança machista, que tenta separar as mulheres “de família” daquelas “da rua”. Músicas, fantasias, brincadeiras e atitudes reforçam tais conceitos ultrapassados. Ao mesmo tempo, é muito complicado entender o Brasil sem levar em consideração tais padrões culturais e mentais. Isso me lembra uma polêmica acerca da obra de Monteiro Lobato, que alguns queriam retirar dos currículos escolares por ser racista. Ora, mas o país na época em que o escritor viveu não era ostensivamente racista? Não é ainda, de certa forma? Vamos evitar todas as obras machistas ou racistas? Vamos fingir que elas não existem? Como historiadora acredito que, mais importante que proibir ou boicotar, seria contextualizar essas manifestações culturais que hoje nos incomodam.
Mas, voltando ao Carnaval, como chegar a um consenso “politicamente correto”? E mais ainda, precisamos desse consenso? Vamos nos contentar com essa discussão rasa, reduzindo uma questão importante a uma troca de acusações entre os que combatem a suposta”ditadura do politicamente correto” e aqueles que defendem, uma também suposta, “liberdade de expressão sem limites”? Ou vamos enfrentar o racismo e o machismo com honestidade, aceitar nossas heranças de forma crítica e tentar construir um presente baseado no respeito?
- Texto de Márcia Pinna Raspanti.
- Sobre as origens do Carnaval, leia também: De onde vem o Carnaval
Imagens: caricatura de Angelo Agostini; acima, “Baile Popular”, de Di Cavalcanti e obra de J. Carlos.