As representações do aborto

N o projeto de construção da maternidade ideal, o aborto aparecia
como uma mancha capaz de oxidar o belo retrato que
se queria fazer das mães. Se o enfoque era o da multiplicação
das ‘gentes’, se o esforço era o de tomar útil a sexualidade dentro do casamento, o
aborto mostrava-se como uma forma de controle malthusiano, desaprovado tanto
pela Igreja quanto pelo Estado.

Via de regra praticado por mulheres em estado desesperador diante de uma
gravidez indesejada, de um fruto que representava mais dificuldade ou miséria, o
aborto voluntário significou nos tempos modernos – como também na Antiguidade
e Idade Média – a arma de controle dos casais legítimos. Diz Jean-Louis Flandrin
(1982, p.172) que, tal como o infanticídio e a contracepção, ele era utilizado sobretudo
no quadro das relações extraconjugais.

Incorporando essa hipótese, podemos pensar que a pregação sistemática da
Igreja em colônias contra o aborto teria uma especificidade: mais do que perseguir o homicídio terrível que privava uma inocente alma do batismo e da salvação eterna, a verborragia eclesiástica representava a caça aos desdobramento condenáveis nas ligações fora do matrimônio. E tais ligações, em forma de concubina e mancebias, espaço, portanto, para filhos ilegítimos e abortos, eram correntes e provocavam indizível horror frente aos esforços do projeto tridentino.

À medida que o papel da mulher como santa-mãezinha começava a ser mais bem
delineado, acirravam-se os ataques à prole ilegítima e ao aborto, entendido como
mau fim de uma ligação irregular. Por trás, portanto, das reprimendas ao aborto
divulgadas por párocos, visitadores, sermões e manuais de confissão, tornavam-
se audíveis tanto a repressão contra a prática desse tipo de controle malthusiano
quanto o elogio à mãe ideal que nunca abortara, pois que seu fruto crescia à sombra
de uma ligação legítima.

Embora não tenhamos dados sobre a frequência com que se abortava, ao
contrário da França do Antigo Regime, na qual as declarações de gravidez feitas
à justiça do Estado permitem calcular aproximadamente um número de abortos,
este crime já se comentava nas primeiras cartas jesuíticas como um hábito corrente
entre as mulheres indígenas.

Maria Beatriz Nizza da Silva (1984) com a sensibilidade peculiar de suas
pesquisas, foi quem primeiro apontou para a questão do aborto na Colônia,
perguntando-se se sua prática teria sido incrementada pelos hábitos indígenas
ou se haveria essa tradição igualmente forte na Metrópole. Pensamos que, por
razões diferentes, mas com o emprego de métodos similares, o aborto já fazia
parte do universo da maternidade e da feminilidade, tanto no Brasil quanto
em Portugal.

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O choque dos jesuítas e a sua aflição epistolar eram decorrentes das teses
debatidas em concílios, sermões e cânones que não perdiam uma única oportunidade
de denunciar o aborto. Condenação inelutável a uma existência no limbo,o aborto era um pecado contra o corpo, mas sobretudo contra Deus, que depois da queda dos anjos rebeldes precisava repovoar o paraíso com almas batizadas. Lembra bem Maria Beatriz Nizza da Silva que a luta contra o aborto estendeu-se ao século XIX, e somavam-se a ela perplexidade e rejeição. Debret ao retratar uma vendedora de arruda, anotava: “A acreditar-se na credulidade generalizada, esta planta tomada como infusão asseguraria a esterilidade e provocaria o aborto, triste reputação que aumenta sua procura”. A arruda e o enxofre dos castigos que se seguiram ao aborto eram a moldura para as críticas eclesiásticas desses tempos.

Igreja e Estado afinavam na perseguição ao ato que significava a antítese da
maternidade. As leis do Reino condenavam o aborto voluntário, exigindo-se proceder
sumário no caso de haver “mulheres infamadas de fazer mover outras” ou
“médicos, cirurgiões ou boticários que dão remédio para este efeito com dolo mau”. Inclusive, uma provisão de dom Sebastião, datada de 12 de março de 1603, acionava o regimento de quadrilheiros, espécie de polícia de costumes, recomendando que tais mulheres acusadas de fazer mover “com beberagens” fossem denunciadas a corregedores e juízes.

Os quadros da Igreja eram também inquiridos sobre a familiaridade que teriam
com esse crime. Os processos de admissão aos seminários, intitulados de Gênere,
vita et moribus, perguntavam diretamente se o noviço teria sido causa “de algum
aborto, fazendo mover alguma mulher”. Prontuários de teologia moral, como o de
Francisco Larraga (1740, p.146), condenavam violentamente a “agência, auxílio
ou conselho para fazer aborto depois de animado o feto”.

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Nessa documentação encontra-se presente a crença herdada da Antiguidade
de que o feto não estaria animado senão depois de passados quarenta dias, o que
deixava amplas margens para medidas abortivas levadas a termo por mulheres
que não estavam de todo desarmadas diante de uma gravidez indesejada, Larraga
é sensível a essa realidade e admoesta os que procuram medicamentos e remédios
“para o dito fim depois de estar animado o feto”. Mas ressalva que não incorrem em
tal censura “quando o feto ainda não está animado, nem quando os remédios só se
dão para que a mulher fiat sterilis, vel non concipiat”.

Não deixava a Igreja, diz Maria Beatriz Nizza da Silva, de examinar os casos
em que a mulher grávida, estando enferma, tomava remédios dos quais se seguia
indiretamente o aborto:

“Que estando a mulher com enfermidade perigosa e não havendo outro remédio
para a curar, se lhe poderá dar remédio de sangria, purga ou outro semelhante
ordenado directe a saúde da enferma, ainda que per acidens se siga o aborto de feto
animado ou não animado. E a razão é porque a mãe tem direito de conservar a sua
vida”.

Este direito, como mostrarei adiante, foi sem dúvida várias vezes invocado
através de meios corriqueiros para abortar.

As teses de moralistas e canonistas tornavam-se perceptíveis às camadas populares
e aos fiéis, sobretudo pelos manuais de confessores. Eles traziam recomendações
precisas para condenar sistematicamente o aborto, controlar suas formas e puni-lo
com penitências que variavam de três a cinco anos de duração.

O visitador Mateus Soares instava os párocos das capelanias que percorria para
que indagassem às suas penitentes se tomavam “alguma beberagem ou mezinha
para mover, ou moveram alguma pessoa, homem ou mulher que lhas desse e nisso
consentisse e de que meses eram prenhas quando moveram e se moveram macho
ou fêmea”. O olhar mais penetrante do visitador eclesiástico
varria a intimidade das mães, arrancando-lhes até informações sobre a identidade
do fruto recusado. E entre as indígenas, era Bernardo de Nantes (1636, p.141)
quem de forma didática perguntava: “Bebeste alguma coisa para vos causar aborto?
Movestes porventura? Apertastes a barriga com as mãos para mover? Matastes
vossa criança no ventre?”. E o jesuíta inventariava os gestos tradicionais do aborto,
os mecanismos que derivavam da atrição ou farmacológicos, que se utilizavam
sobretudo da fitoterapia, e nela, por excelência, a arruda.

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Cabia também ao confessor convencer a mulher da importância de conservar
seu fruto, relevando o seu papel no compromisso de conservação da espécie. Da
mesma forma com que deviam “sofrer com paciência as incomodidades da prenhez
e as dores do parto como pena do pecado”.

A reflexão do confessor bem expressava a convicção da Igreja de que na maternidade
residia o poder feminino de dirimir pecados. E dentre eles, o maior de todos:
o original. Causa central da expulsão do paraíso terreal, a mulher podia resgatar o gênero humano do vale de lágrimas que bracejava, chamando a si a permanente tarefa da maternidade. Nessa perspectiva, o aborto corporificava maior monstruosidade. Além de privar o céu de anjinhos, ao privar-se das “incomodidades da prenhez” a mulher estava fugindo às responsabilidades de salvar, no seu papel de boa mãe, o mundo inteiro.

Junto com o horror ao aborto, a Igreja convivia ainda com o fantasma do
infanticídio, o dito ‘afogamento dos filhos’ no leito conjugal. O hábito das mães deitarem-se com seus bebês e os esmagarem durante o sono estava disseminado no Antigo Regime.
Os dados que são capturados através do discurso da Igreja sobre o, aborto não
permitem ao historiador saber quem abortava. Seriam as mães solteiras, as viúvas, as
adúlteras? Delas não há um retrato nítido. Por que abortavam? O desespero diante
do filho indesejado, o pânico diante do estigma do meio social, da morte social ou da
exclusão familiar nos parecem respostas razoáveis. Mas que tipo de estigmatização
poderia sofrer a mulher que abortava num período em que o matrimônio era regra
teórica, e no qual viveram tantas concubinas, amásias e abandonadas, mulheres
para quem a maternidade psicológica se sobrepunha à função biológica, fazendo-as
criar indistintamente filhos legítimos e ilegítimos? – Mary del Priore. (Baseado em “Ao Sul do Corpo”).

pierinodelvaga

“A Sagrada Família”, de Pierino del Vaga.

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