Pedofilia: o fim da inocência

Em uma semana em que os meios de comunicação publicaram o caso polêmico do cineasta Woody Allen, que foi acusado de abusar de sua filha adotiva (e negou veementemente as acusações), vamos discutir este fantasma que assombra a sociedade atual. Como a pedofilia foi tratada ao longo da história?

A palavra é recente, mas a questão não tem idade. O neologismo deriva de “pedófilo”, de uso corrente no século XIX. Esse termo que, por sua vez, substituiu o antigo “pederasta”, tomou um sentido especial como “amor de jovens meninos”, mais tarde, sinônimo de homossexualismo. A palavra derivou da expressão “pedofilia erótica” proposta por Krafft-Ebing, em 1886, no seu Psicopatia sexualis, para qualificar a atração sexual em relação às pessoas impúberes.

A pedofilia sempre existiu. Na Bíblia, há passagens no Gênese em que se oferecem crianças ou virgens da família aos algozes, para evitar sevícias sexuais aos hóspedes da casa. Na Roma antiga, senhores serviam-se de seus pequenos escravos, sobre os quais tinham poder de vida e morte. Desde as primeiras Visitas do Santo Ofício às partes do Brasil, no século XVI, Inquisidores assinalavam o estupro de crianças. Meninos e meninas de seis, sete e oito anos eram violentados por adultos sem nenhum drama de consciência. Senhores sodomizavam moleques ou molecas escravas, padres aos seus coroinhas, enfim, parentes e crianças da família participavam de uma ciranda maldita na qual um único pecado contava para a Igreja: o do desperdício do sêmen. Afinal, ele deveria ser usado exclusivamente para a procriação. E era apenas esse crime que o Inquisidor perseguia. O fato de ser cometido com pequenos passava despercebido. Era coisa secreta e o silêncio protegia os culpados.

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Ao final do século XIX, o médico Francisco Ferraz de Macedo, em estudos sobre a prostituição no Rio de Janeiro, denunciava a exploração sexual de crianças “que preferiam indecências”. Descrevendo-as com os narizes escorrendo, maltrapilhas, “olhar espantado e rosto macilento”, diagnosticava sem piedade: “eis um mísero sodomita passivo dos mais desprezíveis”.

No início do século XX, porém, o segredo foi rompido e passou de privado a público. O alarme soou e o Código Penal começou a sancionar as relações entre crianças e adultos. A partir de lei de 25 de Setembro de 1915, o artigo 266, que se referia ao crime de corrupção, foi modificado para constituir dois parágrafos distintos:

“§1º Excitar, favorecer ou facilitar a corrupção de pessoa de um ou outro sexo, menor de 21 anos, induzindo-a á prática de atos desonestos viciando a sua inocência ou pervertendo-lhe de qualquer modo o senso moral”.

“§2º Corromper pessoa menor de 21 anos de um ou outro sexo, praticando com ela ou contra ela ato de libidinagem”.

Os primeiros escândalos vieram à tona na França. Numa época em que a Igreja e o Estado se digladiavam para saber a quem caberia a educação, pública ou privada, emergiam notícias sobre “a pedofilia de pedagogos”. Nas últimas décadas do século, o combate em favor da escola pública apoiava-se na defesa de professores laicos. Isso, pois alguns padres já tinham sido condenados à prisão e degredo por molestar alunos. Em outros casos, além da Igreja, a própria família mergulhava em silêncio conivente.

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Para discutir a questão, Crisólito de Gusmão, publicou, em 1920, a obra “Dos Crimes Sexuais. Estupro, atentado ao pudor, defloramento e corrupção de menores”. Por considerar o assunto de “maior atualidade” e assinalar a evolução das leis penais contra os que molestavam menores, o jurista antecipava: “a vítima atual” seria “a corruptora no futuro próximo”. Os molestados, hoje, viriam a ser molestadores, amanhã. E esses eram os “velhos afetados de isocronia sexual”, a maioria com mais de 50 anos.

Mas como se desfolharia a tal inocência? Da forma mais crua. Quem a descreve é o médico Hernani Irajá que denominava a pedofilia de “parestesia sexual ou pederose”.

“Alguns atraem com grande habilidade as pequenas vítimas, mimoseiam-nas com presentinhos, brinquedos, doces; cativam-lhes pacientemente a confiança até chegar o momento propicio. Outros utilizam-se de vários planos e usam até as ameaças e a violência”.

Variados eram os casos contados pelo médico. Atores, inúmeros! Desde o “intelectual, poeta e pervertido sexual”, casado, pai de filhos que atraía meninas de seis a doze anos, até meretrizes que abusaram de um garoto de oito anos! Irmãos com duas meninas de quatro e seis anos ou “uma moça, filha de distinta família que, secretamente, ensinava posições e movimentos lascivos a crianças, para que representassem imitações de cópula, gozando ela com isto”.

Segundo tais especialistas, as causas da pedofilia decorriam do “esfalfamento sexual” e eram produzidas por embriaguez alcoólica. E seus atos realizados por idiotas e dementes, sobretudo os “dementes senis”. E esclarecia: “A pederose faz parte das cronoinversões, isto é, inversões de tempo ou idade”. Se ela se manifestasse num homem jovem era porque esse estaria atacado de decadência senil. “Seria imprudente julgar o culpado de um atentado sobre uma criança apenas pela sua aparência física: ele poderá parecer robusto, mostrar-se bem conformado e, no entanto ser vítima de um começo de impotência sexual”, explicava outro médico, o doutor Bourdon, que acreditava na eficácia dos tratamentos da tiroide para tais “perversos e sádicos”. Ou na eficácia das técnicas de outro doutor, o Freud:

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“A pederasia pode combinar-se com a inversão. É provável que a sua eclosão possa ser provocada por emoções violentas na infância, e que então a psicanálise a possa curar […] A causa psíquica que faz agir o autor desses atentados é frequentemente a vergonha de uma impotência viril”.

No combate à pederasia ou pederose, importante, segundo os estudiosos, eram os esportes e regime alimentar correto, “sobretudo a marcha e os passeios ao ar livre”. Mas, os exercícios físicos não foram suficientes para diminuir o abuso sexual contra crianças. Mais a frente, a “pederasia” converteu-se em pedofilia, inclusive com o aparecimento na Europa, nos anos 1970, do “militantismo pedófilo”. Os casos multiplicados de abuso sexual exporiam publicamente o que antes era segredo: a destruição da inocência.

– Mary del Priore (artigo baseado no livro “Histórias Íntimas”).

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Crianças escravas foram vítimas indefesas dos abusos.

2 Comentários

    • Ana Luiza

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