“Comida de escravo”

           Em África, o escravo não escolhia o que comer: recebia ração. Grandes plantações de gêneros, destinadas aos capturados e recolhidos em barracões na costa, cresciam entre São Felipe de Banguela, Amabaca, Cacondo ou Cajango. Informa Luís da Câmara Cascudo que ali recebiam num saco, a sua provisão de milho fresco ou assado, aipim e farinha de mandioca. Nas longas marchas, acorrentados, não tinham tempo para usar o azeite de dendê ou ndende, em quimbundo ou o sal, substituídos pelo peixe seco. Raramente conseguiam preparar um angu com farinha de milho, o anfunge, ou uma sopa, a matete. O tráfico de Angola e Guiné se abastecia nos portos brasileiros com farinha de mandioca, macaxeira ou aipim, feijão, salpreso e a partir do século XVIII, aguardente. No XIX, Carl Seidler viu acrescentarem arroz à dieta da travessia. Os barcos que cruzavam o Atlântico introduziram o uso do milho e da mandioca no litoral do continente.

        Nos primeiros séculos, os africanos estranharam a alimentação. Ao milho que lhes era dado “por fruta”, como indica Gabriel Soares de Souza, aos carás e às pacovas, banana nativa, preferiam o sorgo, os inhames e as bananas. No Recôncavo baiano, os senhores entenderam a lição e passaram a plantar inhames e bananas. Já a farinha de mandioca era obrigatória na casa grande ou na senzala. Que o diga Soares de Souza:

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Desta farinha de guerra usam os portugueses que não tem roças […] com que sustentam seus criados e escravos e nos engenhos se provêm dela para sustentarem a gente em tempo de necessidade”.

        Ao desembarcar exaustos e sangrando pelo “mal de Luanda”, nome dado ao escorbuto, os escravos iam recuperar a saúde e, graças a ela, o preço. No Nordeste, os cajuais, ricos em vitamina C, eram remédio certo. No Rio de Janeiro, de onde eram distribuídos para as outras capitânias, faltavam os cajuais, mas a preocupação dos comerciantes do mercado do Valongo era a mesma: recuperar os viajantes. Eram, então, alimentados com farinha de mandioca, feijão e carne seca, e como observou o viajante Rugendas “não lhes faltam frutas refrescantes”.

         Uma vez adquiridos, a comida de escravo variava com sua função ou atividade. E, segundo Cascudo, variava pouco. A base era idêntica, diz ele, e apenas a incidência de alguma carne ou pescado para dar gosto distinguia o regime. Para o Norte, a farinha de mandioca dava o tom do prato. Pelo interior da Bahia na direção Sudeste, predominava o milho, batizado pelo angolês de fubá, nome da farinha em quimbundo, além do mingau mais consistente de angu. Saint-Hilaire observou: “É fazendo cozer o fubá na água, sem acrescentar sal, que se faz essa espécie de polenta grosseira que se chama angu e constitui o principal alimento dos escravos”. No Rio, no tempo de Debret, os escravos das fazendas “alimentavam-se com dois punhados de farinha seca, umedecidos na boca pelo sumo de algumas bananas ou laranjas”. E completava:

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A alimentação do negro numa propriedade abastada compõe-se de canjica, feijão-preto, toucinho, carne seca, laranjas, bananas e farrinha de mandioca […] É permitido, entretanto, ao negro mal alimentado aplicar o produto da venda de suas hortaliças na compra de toucinho e carne-seca. Finalmente, a caça e a pesca, praticadas em suas horas de lazer, dão-lhe a possibilidade de alimentação mais suculenta”.

          Muitas plantas africanas foram, assim, transplantadas para cá, como a palmeira de dendê vinda de Angola ou o quiabo. Em tempo de seca, o escravo podia até comprar a liberdade pela venda de cereais guardados e produzidos no “roçadinho”. Caso de Feliciano José da Rocha que morreu livre e rico, senhor da fazenda Barrentas, no Acari, Rio Grande do Norte, pois vendeu farinha a seu senhor. Já se propriedade de senhores pobres, eles tinham que se contentar como foi dito, com farinha e laranjas. Porém, escravo “pedir de comer” noutra casa era desonra para o senhor. Escravo faminto significava vergonha. Os escravos com filhos menores ou ainda amamentados tinham rações duplas e as mães, horários para atender as crias.

        Nas cidades – é o mesmo autor quem o diz – os recursos se acresciam pela venda de comida preparada e oferecida pelas negras nas praças e cais: angu, mingau de carimã ou milho, peixe assado, milho cozido em grãos servidos no caldo, mungunzá e iguarias vindas da Bahia, possivelmente acaçá, caruru, moquecas com o peixe enrolado em folhas, farinhas de caju e milho torrado açucaradas, o tão elogiado por todos os viajantes, aluá de arroz. E as carnes: seca, afogueada nas brasas ou assada nos braseiros, escaldada em rápida fervura. Para adoçar a boca e a vida, caldo de cana, rapadura, manuês, bolo-preto, pé-de-moleque, arroz doce com canela, doce de coco ralado, “tantos engana-fomes inventados pela penúria aproveitadora do material mais próximo”, conforme Cascudo.

  • Texto de Mary del Priore. 
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“Negras cozinheiras vendendo angu” e “Negra tatuada vendendo caju”, de Jean Baptiste Debret.

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