De um século a outro…

No início do século XX, o país viveu um momento de ascensão da classe média. Nas cidades, ampliavam-se, sobretudo para mulheres, as possibilidades de acesso a informação, lazer e consumo. Os homens temiam pela “emancipação”, e em revistas como Careta a ironia se tornou uma forma de queixa. Caricaturas mostravam a inversão de papéis: um homem dando a mamadeira, pois a mulher se demorara na modista. Ou outro que não acertara a sopa e o assado do jantar, e o diálogo:

 

–  Também você para nada presta.

– Mas Milu, se eu nunca aprendi a fazer isso…

– E o que foi que aprendeu? O senhor é um imprestável…

– Mas Milu…

–Cale-se, homem, cale-se… Molenga! Banana! Pastelão!

 

Fora dos papéis tradicionais, a mulher era uma promessa de flagelo. As inteligentes, consideradas perigosas. O médico italiano Cesare Lombroso afirmava que aquelas dotadas de grande capacidade intelectual eram criminosas natas. Seriam incapazes do altruísmo, da abnegação e da paciência que caracterizavam a maternidade. Mulheres honestas que quisessem se educar corriam o risco de se tornar prostitutas ou suicidas, porque homens comuns jamais se casariam com elas – o conhecimento lhes causava “repugnância”.

Porém, nada deteve a modernidade. O carro se popularizou, assim como a piscina de clubes, o cinema, excursões e viagens. Jovens podiam passar mais tempo juntos, e a guarda dos pais baixou. Filmes americanos seduziam brasileiros, e não foram poucos os que aprenderam a beijar vendo Humphrey Bogart e Lauren Bacall, casal de amantes na vida real. Ao final dos anos 30 e 40, a urbanização e a industrialização traziam mais novidades. Em 1932, o voto feminino para alfabetizadas e maiores de 21 anos entrou na pauta das eleições.

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Elas se aproximaram deles. Nas cidades, as consequências imediatas foram vistas nas novas formas de recreação e namoro, com moças e rapazes em contato direto, tanto entre gente comum quanto na burguesia. O hábito de ir a danças, ao cinema e o footing – passeios a pé – asfixiavam a organização tradicional do namoro com bilhetes, palavras bonitas, serenatas, e, ainda mais importante, enfraqueciam as iniciativas casamenteiras da família. Agora, eram as partes interessadas que decidiam.

O matrimônio, porém, continuava em alta. O presidente Vargas, em um decreto assinado em abril de 1941, insistia em que a educação feminina deveria formar mulheres “afeiçoadas ao casamento, desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes na administração da casa”.

As revistas tinham então um papel modelar no que dizia respeito à vida familiar. Querida, Vida Doméstica, Você, Jornal das Moças ou seções femininas de O Cruzeiro impactavam como formadoras de opinião. E o que elas diziam? Que ser mãe e dona de casa era o destino natural das mulheres, enquanto a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade.

Não importavam os desejos ou a vontade de agir espontaneamente; o que contavam eram as aparências e as regras, pois, segundo conselho das tais revistas, “mesmo se ele se divertir, não gostará que você fuja dos padrões, julgará você leviana e fará fofoca a seu respeito na roda de amigos”. Durante os chamados Anos Dourados, aquelas que permitissem liberdades “que jamais deveriam ser consentidas por alguém que se preze em sua dignidade” acabavam sendo dispensadas e esquecidas, pois “o rapaz não se lembrará da moça a não ser pelas liberdades concedidas”.

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Mantendo a velha regra da submissão feminina, eram os homens que escolhiam e, com certeza, preferiam as recatadas, capazes de se enquadrar nos padrões da “boa moral” e da “boa família”.  Fora desses padrões havia os “párias”, que teriam optado pelo desquite. Este era coisa recente. Foi introduzido no Código Civil em 1942, estabelecendo a separação sem dissolução do vínculo matrimonial. E o desquite só admitia processo quando havia indicações constrangedoras, do tipo: adultério; tentativa de morte; sevícia ou injúria grave; abandono voluntário do lar por mínimos dois anos contínuos. Ou por mútuo consentimento, se fossem casados há mais de dois anos. “Ser uma desquitada” equivalia a um palavrão – significava ter falhado na tarefa de constituir e manter a família. Um ano depois, a legislação concedeu permissão para a mulher casada trabalhar fora de casa, “sem autorização expressa do marido”.

Recato era sinônimo de distinção. Moça de elite “não tomava iniciativa em procurar o rapaz… quem se declarava era sempre ele”. Só mulheres de reputação duvidosa tomavam iniciativas ostensivas e em público. Quanto às centenas de milhares de relações vividas fora do casamento, estas passaram a ser consideradas “imorais”. Membros das camadas mais baixas da população, como ex-escravos, operários, imigrantes pobres, negros e mulatos, que vivessem em amancebamentos, concubinatos ou ligações consensuais eram acusados de “conduta indecente”. Em 1913, a obra anônima O problema sexual esclarecia que “no concubinato dissipam-se sensações de que temos necessidade para o casamento, para as grandes ações de nossa existência, para reacender a chama da vida”, em razão de que “todas as forças das nossas faculdades amatoriais” devem ser reservadas para “aquele amor”, pois é muito longa a vida “para ser suportada com um amor valetudinário”, ou seja, enfermo, débil. – Mary del Priore

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