Tibira foi o termo genérico tupinambá alusivo à persona homoerótica que teve maior difusão entre os moradores do Brasil nos dois primeiros séculos de colonização, referido igualmente em alguns documentos da Inquisição, particularmente no Maranhão e Paraíba. Já publicamos aqui neste blog, um texto do antropólogo Luiz Mott, que relata o primeiro crime homofóbico praticado no Brasil. A execução ocorreu no início do século XVII, no Maranhão, quando padres capuchinhos executaram um índio timbira de forma cruel, na boca de um canhão, para puni-lo de seus pecados nefandos. Mott também analisa como era visto o “pecado nefando” naqueles tempos:
Não temos notícia no Brasil de outros criminosos que tivessem sido executados na boca de uma canhão. A leitura do relato da execução desse Tupinambá revela o quão estava enraizada no imaginário dos missionários a condenação máxima ao nefando e abominável pecado e crime de sodomia, já que não há notícia na crônica do Maranhão sob domínio francês, nem alhures, de outro criminoso condenado à morte, além deste infeliz sodomita. E como explicar tamanho rigor e crueldade se o próprio Yves D’Évreux, corifeu desta incendiária limpeza moral, pregava que Deus preferia a conversão e a vida do que a morte do pecador?
A nosso ver, a decisão de aplicar a pena capital ao infeliz Tibira, “bruto mais cavalo do que homem” deve ser interpretada a partir de duas hipótese: como estratégia para evitar o temido castigo divino provocado pelo pecado de sodomia e como exemplaridade pedagógica e estratégia para aterrorizar e impedir o surgimento de novos “filhos da dissidência”.
Se ainda hoje em dia religiosos fundamentalistas continuam pregando que o Brasil e o mundo correm grave risco de serem severamente punidos pelo Todo Poderoso por causa da liberação mundial da homossexualidade, referindo-se inclusive à epidemia da Aids e ao tsunami como “chicote divino” contra os gays, quão mais forte devia ser o medo dos cristãos de antanho em atiçar a cólera do Onipotente, crédulos que eram nas intervenções punitivas do Deus dos Exércitos, na ação maléfica do Diabo, no poder protetivo das relíquias e indulgências, na ocorrência de milagres e aparições celestiais. Só purificando a terra de suas maldades evitar-se-iam os temidos castigos celestiais: peste, fome, terremotos, dilúvios. “O crime de sodomia é gravíssimo e tão contagioso, que mostra a experiência pois em breve tempo infecciona não só as casas, lugares, vilas e cidades, mas ainda Reinos inteiros.” E mais: “É tão contagiosa e perigosa a peste da sodomia, que haver nela compaixão, é delito. Fogo e todo rigor, sem compaixão nem misericórdia! Tanta força tem o lugar apestado deste vício que para livrar dele até a um inocente, é necessário a violência de muitos anjos”.
Portanto, medo do castigo divino, mas também, receio do contágio. Numa recém fundada colônia de povoamento, a família conjugal devia ser, mais do que nunca, a célula mater da nova sociedade que se desejava implantar no Novo Mundo. Era vital circunscrever a sexualidade ao leito conjugal, visando exclusivamente o aumento populacional: “crescei e multiplicai-vos!” Ao castigar um sodomita público com a pena máxima e com o aterrorizante estrondo do canhão, contando para tanto com o apoio do braço civil e militar, e o calaboracinismo dos próprios nativos, os religiosos aplicavam a pedagogia do medo não só para erradicar esta abominaçao da terra selvagem, como inibir sua prática entre os colonos, já que o homoerotismo além de desperdiçar a semente da tão necessária reprodução de novos cristãos, acreditava-se que esse nefando vício tinha como incontrolável consequência, a efeminação de seus praticantes, enfraquecendo sua valorizada virilidade tão indispensável no confronto guerreiro contra os inimigos silvícolas e lusobrasileiros.
Daí a insólita utilização do canhão como instrumento de execução dessa pena de morte. Enquanto no Velho Mundo, nos reinos de Espanha e Portugal, inclusive na própria França, há séculos determinavam as leis que os sodomitas e outros criminosos morais “sejam queimados e feitos pelo fogo em pó, por tal que já nunca de seus e corpos e sepulturas possa ser ouvida memória”, a utilização do canhão certamente teve como intenção dramatizar ainda mais os efeitos aterradores desse castigo. Se um simples pipoco do bacamarte do Caramuru, levou os Tupinambá da Bahia a se curvar perante o náufrago como “Filho do Trovão”, imaginemos o terror causado pelo ensurdecedor estouro de um canhão e seu incomparável poder de esfacelamento do corpo do infeliz criminoso! Seu estrondo deve ter sido ouvido a léguas de distância, encarregando-se o carrasco de publicizá-la de viva voz: “Caruatapirã , o algoz, exaltava-se deste seu feito e dele se servia para se fazer temido contando por todas as aldeias por onde andava e o que tinha feito, asseverando ser irmão dos franceses, seu defensor e exterminador dos maus e dos rebeldes” Um refinado colaboracionista!
– Luiz Mott.
Eu gostei da matéria e considero válida para inciar um debate sobreos casos de sodomia na Colônia Portuguesa, minha única ressalva é com relaçã o ao título de primeiro crime homofobico dado à execução ocorrida no início do século XVII, soou um tanto anacronico pois neste período ainda não existe uma idéia de homofobia consolidada na colônia, existia uma certa idéia de pecado que estava ligada a esses “crimes de sodomia”.