A Academia Imperial de Medicina travou uma verdadeira guerra contra o espiritismo, no Brasil do século XIX. A população cada vez mais buscava os médiuns e “curandeiros” – “pessoas que nunca haviam aberto um livro de medicina” – para diagnósticos e tratamentos das doenças. Isso já era demais! Os médicos se consideravam o símbolo da ciência contra o charlatanismo. Mas também da religião contra a superstição. Do adiantado contra o primitivo, da postura desinteressada contra a interesseira, da observação contra o irracional. Enfim, do saber oficial contra um saber privado e doméstico. O espiritismo não podia ser uma boa medicina porque era baseada em uma doutrina contrária à boa lógica e à boa religião. A reencarnação, a negação do pecado original, a negação do princípio da espécie humana em Adão, tudo isso colaborava para seu descrédito entre os médicos reunidos na Academia. E o que dizer do médium? Um charlatão.
Explica um antropólogo que, nas últimas décadas do século, o espiritismo entrava na pauta dos doutores a partir de dois temas: a hipnose e a sugestão. Desde 1888, muitas teses versando o assunto passaram a fazer parte dos congressos de medicina.
Raimundo Nina Rodrigues, famoso médico baiano, com base na observação dos candomblés, discutiu em seu “O animismo fetichista” os feitiços, entre os quais incluía as práticas de cura africanas. Estas seriam condenadas, pois era preciso proteger a saúde das populações: todo e qualquer saber médico estaria acima de concepções mágicas. E, se o doente acabasse curado, era por processos totalmente ignorados pelo feiticeiro. Daí a importância de defender o exercício da medicina exclusivamente por diplomados. Mas perseguição às “práticas primitivas”? De nada adiantaria, ele argumentava. Pois estavam profundamente enraizadas no “sentimento religioso” e no cotidiano das pessoas. Não seria a polícia que conseguiria extraí-las de lá.
Nina Rodrigues acreditava também que o “sonambulismo provocado” durante a possessão do santo levava à histeria ou a um “erro patológico” na psicologia dos indivíduos, aproximando práticas kardecistas dos problemas decorrentes da “alienação mental”.
Nas primeiras décadas do século XX, o pensamento médico contra o espiritismo radicalizou-se. Antes tratado de passagem, o tema se tornou objeto de artigos, teses e livros inteiros. Em 1927, a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro promoveu um “inquérito” sobre o tema com a opinião de onze médicos, a maioria ligada à especialidade da medicina legal ou da psiquiatria. Segundo eles, o espiritismo não somente comprometia a saúde das pessoas como se associava a anomalias psíquicas. Ele era um “fator de doença mental”, passando a fazer parte do senso comum de médicos e psiquiatras.
A essa altura, tanto a psiquiatria quanto a medicina legal já estavam bastante consolidadas. O Hospital Nacional recebia “alienados mentais”, ambas as disciplinas eram discutidas em cursos na Faculdade de Medicina e várias associações cuidavam do assunto, como a Liga Brasileira de Higiene Mental e a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, entre outras. Os doutores Henrique Roxo e Xavier de Oliveira, psiquiatras ligados ao Hospital Nacional de Alienados, apresentavam estatísticas que colocavam o “espiritismo” como o terceiro fator entre as causas de alienação mental, logo atrás da sífilis e do alcoolismo.
Mas foi um livro de Leonídio Ribeiro e Murilo Campos, “Espiritismo no Brasil”, que transformou as concepções médicas sobre a doutrina. Apresentado como um estudo “clínico e médico-legal” para explicar um conjunto de fenômenos, o livro se debruça sobre três questões: a explicação dos fenômenos ditos espíritas, o espiritismo como fator de alienação mental e os danos que acarretaria à saúde da população. Ao ampliar a discussão sobre mediunidade, clarividência, telepatia ou levitação, lendo-os à luz da psicanálise, os autores concluíam que fatores como sugestão, dissociação psíquica e mediunidade podiam ser buscados na dinâmica psíquica dos indivíduos. As diversas modalidades de espiritismo não passavam de magia, modalidades da “velha feitiçaria” ou um “apelo ao sobrenatural”.
Quanto à segunda questão, os doutores examinaram as condições nas quais se realizavam as sessões espíritas. Ali, encontravam-se muitos “indivíduos cujo equilíbrio mental não se acomodava a tal ambiente de mistério […] predispostos mentalmente às afecções mentais”. Segundo os doutores, eram “psicóticos” que passavam a incorporar motivos espíritas em seu quadro de sintomas; eram “débeis psíquicos” que procuravam as sessões espíritas para fugir aos problemas do cotidiano. Ou “esquizoides” para quem o espiritismo era um pretexto para fugir ao convívio social. E, finalmente, eram histéricas que espontaneamente se revelavam médiuns, e se prestavam a exibições análogas às sonambúlicas.
Tudo isso resultava em uma “mediunopatia” ou “mediunomania”, manifestações de caráter alucinatório ou uma “loucura de colorido espírita”. Segundo eles, o indivíduo com doença mental encontrava nas sessões espíritas um palco para desenvolvê-la. O espiritismo era o fator “desencadeador da alienação mental”! Aquilo que começava como uma sugestão descambava para alucinação. E quem encarnava o modelo? O “médium”, alguém dominado por “delírios e alucinações”. Já a assistência era constituída por “ignorantes, analfabetos, pessoas de inteligência inferior”, sujeitas às influências psíquicas e empreendidas pelo diretor do centro espírita, um charlatão e explorador. Nesse ambiente, se passava da loucura à possessão.
Outra pergunta que não queria calar: haveria relação entre práticas espíritas e criminalidade? Do ponto de vista dos médicos, certamente. Pois não faltavam casos em que, inspirados por “espíritos”, indivíduos cometiam crimes até hediondos. Resultado: nove entre onze doutores acreditavam que, sim, o espiritismo fabricava loucos. Como responder a esse mal? Criando uma campanha de higiene mental endossada por vários médicos, para impedir reclamos e anúncios de centros espíritas nos jornais, e fazendo uma rigorosa mobilização das autoridades policiais e sanitárias tendo em vista todos os lugares de culto, com o fechamento dos “mais perigosos”, com a prisão dos responsáveis e o encaminhamento dos “médiuns” aos psiquiatras.
Ao associar o espiritismo a um “fator de alienação mental” e a uma “indústria organizada para explorar a credulidade pública”, os médicos e psiquiatras conseguiam enquadrá-lo como doença e também como crime. Nos anos 1920 e 1930, o espiritismo preocupava as autoridades policiais e sanitárias, e não havia como separar os diagnósticos médicos dos esforços de combate à doutrina e suas práticas.
O discurso sobre a necessidade de “higiene pública”, tão na moda no início do século XX, não se reduziu às mudanças urbanas com a finalidade de combater epidemias. Nem ao esforço de isolar os pobres em bairros longe dos ricos. O chamado “embelezamento da cidade”, com a proibição da mendicidade, das serenatas ou da ordenha de vacas pelas ruas, também fazia parte de plano. Plano no qual as questões de higiene pública se somaram àquelas de higiene mental.
Daí, várias intervenções inspiradas na psiquiatria da Alemanha pré-nazista, como a realização de exames pré-nupciais para evitar o casamento entre “degenerados” e a perseguição aos hábitos considerados involuídos, atrasados ou primitivos das sessões espíritas por médicos e psiquiatras, que representavam o saber evoluído e “civilizado”. O saber médico condenou o espiritismo de alto a baixo, diferentemente do saber jurídico, que criminalizava o chamado “baixo espiritismo” e tolerava o “alto espiritismo”.
Texto de Mary del Priore, baseado em “Do Outro Lado: A História do Sobrenatural e do Espiritismo”.
Cirurgia no século XIX.
Interessante artigo. Pretendo ler o livro da Mary del Priore. O curioso é que a medicina, já desde o século XIX, tenta reivindicar para si o direito de cura, e isso persiste até hoje. Tempos atrás existiam várias clinicas de acunpultura, praticadas por pessoas que não eram da área da saúde. Houve um esforço da medicina na política para que a prática fosse abolida ou que a pessoa que praticasse a acunpultura fosse um médico. Venceu esta última. Agora, sabe o mais curioso disso tudo? Os profissionais que realizam a acunpultura hoje aprenderam a técnica com aqueles que não estariam autorizados a praticá-la.
Penso que coisa semelhante aconteceu ou acontece em relação às curas espirituais. Muitos dos médicos do início do século XX se sentiam um tanto quanto feridos por verem a população buscando ajuda nos curandeiros, e não no centro médico.
Enfim, é interessante notar como funciona a ciência. Gostaria de entender melhor como é hoje a relação entre espiritismo e medicina. Tenho visto muitos centro espíritas que realizam curas espirituais, que chegam a fazer alterações claras nos corpos dos indivíduos, muitas vezes livrando-o de sua doença. Não tenho visto um posicionamento claro da medicina a respeito destes casos. Já vi médicos dizendo que as curas realmente ocorrem, mas não conheço pesquisas sobre esses assuntos.
Uma última coisa, esse debate girou muito em torno da legitimidade do espiritismo enquanto ciência. Existiram alguns livros, tanto no Brasil (O espiritismo à luz dos fatos. Carlos Imbassahy, se não me engano publicado na década de 1920) quanto em outros países (O espiritismo perante a ciência. Gabriel Dellane, 1886) de espíritas debatendo os argumentos utilizados pela ciência para criticar a doutrina. Hoje não vejo isto no meio espírita. Acho que em algum momento da história (diria que por volta das décadas de 1950 e 1960) a doutrina espírita deixou de tentar comprovar qualquer coisa e passou a se dedicar mais ao seu lado religioso. Por outro lado, a medicina, após a promulgação do Código Penal de 1940, passou a não estar mais apoiada pelo antigo código penal, que criminalizava a prática do espiritismo e do curandeirismo.
O interessante é que a maioria da população recorria à esses curandeiros principalmente pela falta de profissionais formados na academias, e esses praticantes das curas populares, eram muito reconhecidos pela população.
Em uma pesquisa minha, vi, em uma revista médica da década de 1930, um artigo escrito por um delegado de polícia, no qual ele diz que vários casos de prática de curandeirismo são denunciadas, mas que, na opinião pessoal dele, isso não deveria ser criminalizado, até porque muitas vezes era o único acesso que a população mais pobre tinha a tratamentos de saúde, uma vez que a medicina atendia, principalmente, a população mais abastada.
Seria um excelente artigo, o que desanima a leitura são tantas expressões entre aspas. Tendência esquerdista de relevar que não concorda com um ponto de vista é colocar aspas, mas não seria melhor apresentar um argumento ou simplesmente esclarecer: segundo o pensamento da época, etc.
Oi, Celina. O uso das aspas é plenamente justificado quando utilizamos expressões do típicas do passado, especialmente quando elas hoje têm um significado diferente. É importante destacar também que a autora cita muitas expressões da linguagem científica do período. As aspas também são necessárias nos casos de citações de outros autores, como você deve saber.