Existiam diferenças entre casamentos de pessoas livres e de escravos. As primeiras podiam se casar quando quisessem ou pudessem. O fenômeno sofria interferência de sistemas de religiosidade popular, mitos e crenças, assim como do calendário agrícola ou litúrgico. O chamado “tempo proibido”, ou tempo de penitência, quando a Igreja desaconselhava toda manifestação de alegria e qualquer tipo de festividade coletiva, era observado em nossa população, sobretudo em áreas agrícolas: no Advento e na Quaresma, casamentos caíam quase a zero. Evitavam-se alguns dias para celebração das núpcias: sexta-feira, por exemplo, era tido por nefasto, desde os tempos medievais; o dia da Paixão e Morte do Cristo, considerado de mau agouro, pois trazia dores.
É muito provável que as tradições africanas, profundamente arraigadas, tivessem se transferido para a colônia, incentivando um tipo de família diversa da que possuíam os portugueses. Ou, apesar dos casamentos de escravos com festa e batuque, diferente da que desejava a Igreja. A possibilidade de recriar hábitos em terra estrangeira foi característica de nossos avós africanos. De qualquer modo, casamentos que não duravam, e filhos de pais variados não eram, absolutamente, características dos grupos afrodescendentes, mas da sociedade como um todo.
Não há dúvidas, por outro lado, de que os afrodescendentes tivessem seus rituais de sedução e enamoramento, receita certa extraída de falares africanos. É a linguista Yeda Pessoa de Castro quem reconstituiu um diálogo de “abordagem sexual, sedução e negociação amorosa”, em língua mina-jêje, a partir de um manuscrito mineiro do século XVIII. Vale a pena conhecê-lo:
– UHÁMIHIMELAMHI. Vamos nos deitar.
– NHIMÁDOMHÃ. Eu não vou lá.
– GUIDÁSUCAM. Tu tens amigos (machos)?
– HUMDÁSUCAM. Eu tenho amigo (macho).
– NHIMÁCÓHINHÍNUM. Eu ainda não sei dos seus negócios.
– NHITIMCAM. Eu tenho hímen,
– SÓHÁ MÁDÉNAUHE. Dê cá que eu to tirarei,
– GUIGÉROUME. Tu me queres?
– GUITIM A SITÓH. Vosmicê tem sua amiga (mulher),
– GUI HINHÓGAMPÈ GUÀSUHÉ. Tu és mais formosa do que ela (minha mulher).
A mesma pesquisadora repertoria uma série de palavras de origem banto e iorubá com sentido amoroso, sendo a mais conhecida e ainda viva em nosso vocabulário o termo xodó, que quer dizer, em banto, namorado, amante, paixão. Além desta, há: nozdo – amor e desejo; naborodô – fazer amor; caxuxa – termo afetuoso para mulher jovem; enxodozado – apaixonado; indumba – mulher sem marido, adultério; kukungola – jovem solteira que perdeu a virgindade; dengue, candongo e kandonga – bem-querer, benzinho, amor; binga – homem chifrudo.
Câmara Cascudo acrescenta a essa gramática amorosa o verbo kutenda: pensar em alguém, sentir saudades. Sobre o cafuné, conta-nos o etnógrafo, trata-se de hábito africano trazido de ancestrais angolanos: “Catar alguém é um dever afetuoso e demonstração de bem-querer”. “Eu só quero mulher/que faça café/não ronque dormindo/e dê cafuné”, cantam os antigos. Manuel Querino lembra, dentre as práticas amorosas, a especificidade da magia, que empregava folhas para produzir infelicidades ou para fins libidinosos, tomadas em potagens ou em forma de remédios tópicos. Graças ao feitiço, ou ebó, colocado em lugar previamente escolhido, chamava-se o nome da pessoa a quem se queria atingir.
No campo da violência entre casais, a historiadora Sílvia Lara recuperou histórias de escravos que matavam senhores ou homens livres da vizinhança por “afronta que estes lhe faziam andando amancebados com suas mulheres”. Não faltavam agressões por ciúme, uma vez que havia menos mulheres nos quilombos e plantéis. Inúmeros processos-crime registram agressões de forros ou libertos que reagiam às “velhacarias” das companheiras. Esses Otelos não perdoavam.
O caso de Miguel Moçambique é emblemático das tensões que atravessavam os amores de então: Miguel já cumpria pena, trabalhando para o Arsenal da Marinha, quando conheceu a preta Justina, que visitava com frequência Ilha Grande para vender alfinetes, agulhas e outras miudezas, além de se encontrar com ele. O sentenciado explicou no interrogatório a que respondeu que ajudava muito a dita escrava. Disse que mesmo os jornais que recebia da Marinha pelos serviços de carpinteiro, bem como o dinheiro recebido pela venda de chapéus de palha, que fazia em momentos de folga, gastava-os com Justina. Dava-lhes vestidos, saldava suas dívidas, e ainda, vez por outra, pagava os jornais que esta devia à senhora dela. Mas soubera que Justina o traía com um marinheiro “que a tinha sempre que queria”. Certa tarde, tendo sido levado ao porto, acorrentado a um outro preso, para trabalhar, Miguel pediu ao sentinela para falar com a escrava. Discutiram. Uma testemunha só o viu puxando pelas pernas de Justina enquanto a cobria de facadas. Aos 36 anos, foi condenado às galés para sempre.
Por certo que não era um mundo cor de rosa este em que se movimentavam nossos avós de origem africana. O sistema era cruel. Ele separava famílias, amigos e amantes, esposa e marido. Multiplicava violências. Mas não só. Os arquivos demonstram, com documentos, que casais houve para contrariar a regra – companheiros no cativeiro e no casamento que, longe da equivocada “licenciosidade das senzalas”, comprovam o sentimento no interior dessas uniões. – Mary del Priore.
Casamento de escravos retratado por Debret: nem sempre as uniões seguiam as regras da Igreja.