A experiência de manter um blog sobre História do Brasil, há quase dois anos, tem me ensinado muitas coisas. Uma delas é que o brasileiro é extremamente passional quando se trata de seus ídolos. Podem ser políticos, governantes, celebridades, esportistas, artistas – do passado ou do presente. Quando nos referimos a figuras públicas aqui nesse espaço, não temos o objetivo de julgar ninguém, obviamente. Às vezes, uma notícia banal pode mostrar muito sobre a nossa mentalidade. O intuito é avaliar como a sociedade reage a determinados acontecimentos, sempre com uma perspectiva histórica. Os leitores têm todo o direito de manifestar-se, de criticar ou questionar as nossas ideias.
Quando nos referimos a personagens históricos, as paixões também se exaltam. “Tais personagens são complexos. E não é possível fazer afirmações taxativas sobre os mesmos. Afinal, ninguém estava lá para entrevistá-los e, mesmo que estivéssemos, a entrevista estaria perpassada de subjetivismos. Podemos, sim, nos aproximar, graças aos documentos históricos, de formas de pensar e agir que foram as de nossos antepassados. Figuras históricas, anônimas ou conhecidas do grande público, funcionam como uma janela para o passado”, diz a historiadora Mary del Priore.
Há nem tanto tempo atrás, éramos ensinados nas escolas a reverenciar determinadas figuras. Atualmente, esses personagens não são mais apresentados como heróis, mas, sim, como gente de carne e osso, com dificuldades e problemas como qualquer ser humano. “Eles nos convidam a dessacralizar seus papéis públicos, – reis, militares ou políticos famosos – mostrando-os, também na sua vida privada – maridos, pais, amantes. Biografias também descortinam os fatos que ocorreram no período em que atuaram tornando-os, ao mesmo tempo, atores, críticos e produtos de sua época. Seu percurso ilumina a história por dois ângulos. Um explícito, que propõem uma análise da sociedade na qual o personagem está inscrito. O outro, implícito, ilustra, por sua vez, as tensões, conflitos e contradições de um tempo que se encarna no próprio personagem”, completa Mary.
Nem todos, porém, estão preparados para tirar seus ídolos do pedestal. Preferem ignorar a documentação que mostre o lado mais vulnerável dos personagens que admiram. A História está sempre em construção, novos fatos podem vir à luz, de repente, nos fazendo questionar tudo que acreditávamos anteriormente. Algo que me chamou atenção é o apreço que parte dos brasileiros tem pela família imperial. Recentemente, alguns leitores ficaram enfurecidos por causa de algumas declarações sobre D. Pedro II, que foram baseadas em cartas e diários de pessoas que privavam da intimidade do imperador. Declarações subjetivas como todas as outras, mas que nos são muito úteis para traçarmos um retrato mais completo de seu temperamento.
Para Mary del Priore, o interesse do brasileiro pela família imperial é mais que justificável. “Frente à banalização do cotidiano, às rápidas mudanças e ao crescimento da sociedade de massas, a família imperial traz o sentido da permanência e da memória. Identificados à tradição, e, portanto, ao que ‘não muda’, são considerados especiais e não o comum dos mortais. Daí a grande curiosidade em conhecer a sua maneira de ser, de viver e o de seu passado”.
Ao historiador cabe, muitas vezes, o antipático papel de “advogado do Diabo”, mas, quando as paixões se acalmam, o que fica é o saudável debate para uma melhor compreensão de nosso passado e – por que não? – também do nosso presente.
Texto de Márcia Pinna Raspanti.
“O Inferno”, Irmãos Limbourg (1410-1411).
“Where men are forbidden to honour a king they honour millionaires, athletes or film stars instead: even famous prostitutes or gangsters. For spiritual nature, like bodily nature, will be served; deny it food and it will gobble poison.” ( “Onde os homens estiverem proibidos de honrarem um Rei, hão de honrar milionários, atletas ou estrelas de cinema; até famosas meretrizes e bandidos. Porque a natureza do espírito, como a natureza do corpo, servir-se-á; neguem-lhe comida e beberá veneno.”) C. S. LEWIS
Eu só não entendo sua total simpatia por D. Pedro I, comprovadamente defeituoso como estadista e grande pândego na vida privada, e sua antipatia por D. Pedro II. Acho que se há pecado no olhar de idolatria, também há pecado na tendenciosidade do historiador que não nutre simpatia por determinado personagem histórico. O olhar do historiador nunca é neutro. ” Unhas sujas” é raso demais pra mim.
Olá, Karina. Esse texto a que você se refere é de minha autoria, Márcia Pinna Raspanti – não é da Mary. O caso de D. Pedro II é apenas um exemplo, outros personagens (inclusive dos tempos atuais) já causaram reações semelhantes. E eu não disse que há “pecado” na idolatria, cada um tem suas preferências e gostos. Não existe neutralidade absoluta, com certeza. O papel do historiador é levantar os diferentes aspectos da questão. O artigo é apenas uma reflexão sobre o ofício do historiador e não tem por objetivo criar polêmica sobre nenhuma figura ou acontecimento históricos.