O folclore e as tradições natalinas

       A data da noite do Natal foi fixada em 25 de dezembro, pelo papa Júlio I, no século IV.  Segundo Câmara Cascudo, antes, as igrejas comemoravam de diferentes formas “com grande alegria, clero e povo mobilizam todos os elementos para uma comemoração ruidosa e sonora, canto, bailado, música, refeições e bebidas, sem fim. As representações da cena de natividade, ao vivo, com animais, com os cânticos votivos, surgidos desde que o povo deixou de saber o latim para acompanhar o canto sagrado dos sacerdotes, e louvou, à sua maneira, a grande noite do ano. Os mais antigos cânticos datam do século IX e a época do esplendor foi o XVI. O Natal português ainda está cheio de cânticos”, conta o folclorista.

       No Brasil, o natal sempre foi uma das maiores festas populares, determinando um verdadeiro ciclo, com bailados, autos tradicionais, bailes, alimentos típicos, reuniões. “De meados de dezembro até Dia de Reis, 6 de janeiro, uma série de festas ocorre por todo o país, especialmente pelo interior, onde a tradição é mais viva e sensível. O bumba-meu-boi, boi, boi-calemba, cheganças, marujadas ou fandango, pastoris como as velhas lapinhas de outrora, congadas ou congos, reisados estão nos dias prestigiosos. Para aguardar-se a missa do galo, à meia-noite, há todos esses divertimentos públicos, nas festas particulares ou nas sociedades”, relata Cascudo.

      A denominação portuguesa de “dia ou noite de festa” como sinônimo de Natal persistiu por muito tempo no Brasil, onde dezembro é denominado mês de festa, de acordo com Cascudo. “Esse nome de natal não tem ainda vulgarização de ‘festa’. Diz-se mais Natal nas cidades e entre os letrados total ou parceladamente. Para o povo é noite de festa. Não há mais representação dentro de igrejas, como até fins do século XVIII, mas algumas são exibidas em palcos armados ao ar livre, diante dos templos, por exemplo, Fandango ou Marujada”.

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         Mary del Priore nos conta que, nos tempos coloniais, o hábito de remeter um “pão por Deus” era comum. Espécie de ancestral dos presentes de hoje, consistia na troca de comidas simbólicas, o pão, com seu simbolismo eucarístico e solidário, sendo o favorito. “Não faltou quem fizesse graça, nesta ocasião. O famoso poeta baiano, Gregório de Matos, também conhecido por Boca do Inferno, num de seus poemas ironizou uma freirinha do convento de Nossa Senhora das Mercês, conhecido por seu laxismo. O título diz tudo: “A certa freira que mandou a seu amante graciosamente por ‘pão por Deus’ um cará”! A sugestão era óbvia. De presente, ela queria algo parecido com o tubérculo”.

        Os pecados da gula e da bebedeira eram muito frequentes nessas ocasiões de festa e fartura. Porém, a historiadora destaca que esses excessos eram facilmente perdoados. “O Natal de nossos antepassados era um misto de sagrado e profano, onde a devoção espiritual e os excessos se combinavam com as boas intenções. O Natal era a festa de todos, e, sobretudo, a celebração do convívio e da solidariedade. Carne, arroz e pão eram distribuídos, pelas irmandades religiosas, aos pobres. Ninguém ficava de fora da festa de abundância”.

        Jean-Baptiste Debret se encantou com as festas do Natal e da Páscoa, que proporcionavam à população divertimentos variados e uns dias de descanso na rotina árdua do trabalho.  O pintor francês destacou também as grandes recepções organizadas pelos mais ricos que “por vaidade” reuniam a alta sociedade e ofereciam uma infinidade de bebidas e comidas. “Todos os dias começam, para os homens, com uma caçada, uma pescaria ou um passeio a cavalo; as mulheres ocupam-se de sua toilette para o almoço das dez horas. À uma hora todos se reúnem e se põem à mesa; depois de saborear, durante quatro a cinco horas, com vinhos do Porto, Madeira ou Tenerife, as diferentes espécies de aves, caça, peixes e répteis da região, passam aos vinhos mais finos da Europa. Então o champanha estimula o poeta, anima o músico, e os prazeres da mesa confundem-se com os do espírito, através do perfume do café e dos licores. A reunião prossegue em torno das mesas de jogo; à meia noite serve-se o chá, depois do qual cada um se retira para o seu aposento, onde não é raro deparar com móveis, perfeitamente conservados, de fins do século de Luiz XIV”.

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       Debret descreve (veja a gravura abaixo) uma família rica de partida para passar o Natal no campo, em um flash muito revelador da sociedade brasileira no século XIX. “A mulata representada aqui é da classe dos artífices abastados. Sua filhinha abre a marcha conduzindo pela mão um negrinho, bode expiatório a seu serviço particular; vem em seguida a pesada mulata, em lindo traje de viagem, que se dirige a pé para o sítio situado num dos arrabaldes da cidade; a negra criada de quarto a acompanha carregando o pássaro predileto. A mulata contenta-se com uma criada de quarto preta a fim de não comprometer a própria cor. Vem logo depois da primeira negra de serviço, com o gongá, cesto em que se coloca a roupa-branca. A terceira negra carrega o leito da senhora, elegante travesseiro enrolado numa esteira de Angola (bastante bem imitada na Bahia). A quarta, encarregada de trabalhos grosseiros, lavadeira quase sempre grávida, carrega os trastes das outras companheiras; e a negra nova acompanha humildemente o cortejo, carregando a provisão de café torrado e a coberta de algodão com que se envolve à noite para dormir”.

         Muita fartura de comida e bebida, tradições religiosas, excessos, confraternização entre familiares e amigos, ostentação, música, dança, descanso e divertimento para pobres e ricos: assim eram os festejos natalinos no passado. Percebemos que muitos aspectos se mantém até hoje, mas, sem dúvida, o Natal continua a ser uma das festas mais populares do Brasil.

  • Texto de Márcia Pinna Raspanti.
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Brasileira mulata indo passar as festas de Natal no campo, de Jean-Baptiste Debret, 1826; Acima: presentes de Natal, de Debret, 1827.

 

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