Por que o crime gera tanto interesse na sociedade? Segue mais um trecho do livro – ainda inédito – “História do Crime no Brasil”, organizado por Mary del Priore e Gian Carlo. Neste texto, as autoras analisam os cronistas e a crônica policial no País, desde o início do século XX. Confira:
Por Ana Vasconcelos Ottoni e Marilene Antunes Sant’Anna.
Antes de mais nada, é importante dizer que o crime é um acontecimento histórico popular, conforme assinala o historiador francês Dominique Kalifa. Segundo o autor, “ele é esse fato que ocorre de repente na vida das pessoas ordinárias, suscitando nelas o inesperado, o extraordinário, o acontecimento – o histórico, portanto”. Assim, o fascínio pelo assunto pode ser explicado pelo próprio fato do crime instaurar a anormalidade. Ele parece suscitar nas pessoas a curiosidade em querer saber como e por que indivíduos que possuem normas de convivência social chegam ao ponto de romperem essas normas através dos crimes que cometem. Por outro lado, a quebra das regras sociais é um bom motivo para se pensar – ou sonhar – na ordem e excluir os comportamentos considerados indesejáveis e ilícitos.
Assim como o crime no Brasil e no mundo tem sua História, os cronistas e suas crônicas policiais também possuem a sua. Desde pelo menos a segunda metade do século XIX, com o crescimento das cidades brasileiras, os crimes já apareciam com certa frequência nos principais jornais da época. Publicavam-se as ocorrências policiais do dia, mas estas ainda apareciam na forma de pequenos registros, com breves comentários dos fatos ocorridos. Com a transformação da imprensa em empresa capitalista, o que ocorreu no Brasil na passagem do século XIX para o XX, as notícias de crimes proliferavam nos títulos das reportagens dos principais jornais das grandes cidades, como uma maneira de acompanhar o crescimento destes cenários urbanos e também dos impressos conquistarem um público mais vasto. Afinal, os próprios jornalistas da época diziam que os acontecimentos policiais tinham cada vez mais a preferência do público.
Nos últimos dias de 1929, a jornalista e escritora Sylvia Thibau invadiu a redação do jornal carioca
Crítica e matou com um tiro no abdômen Roberto Rodrigues, filho do diretor Mario Rodrigues – jornalista bem reconhecido por seus pares e que havia fundado o jornal
A Manhã em 1925 – e irmão do jornalista Nelson Rodrigues. O crime se deu logo depois que a folha reproduziu na primeira página em tamanho colossal a notícia do pedido de desquite do casal Thibau, lançando junto a suspeita de que a esposa traíra o marido com um conhecido médico radiologista do Rio de Janeiro. Os cronistas do jornal
Crítica executaram uma campanha pesada para a condenação de Sylvia. Para tanto, buscavam retratá-la como uma mulher que tinha se esquecido dos “seus deveres conjugais e de maternidade” para trabalhar nas redações dos jornais. Esse tipo de pensamento coadunava com a perspectiva dos setores conservadores da sociedade que se incomodavam com a crescente participação feminina no mercado de trabalho, já que consideravam que a esposa devia ocupar o “espaço sagrado do lar” e não o da rua; espaço este último visto como reservado aos homens e prostitutas. Os jornalistas de
Critica também retratavam a figura de Sylvia como uma adúltera que havia manchado a honra de seu marido. Não é à toa que tais cronistas buscavam associar a todo instante os comportamentos considerados inadequados de Sylvia Thibau (“mulher trabalhadora e adúltera”) a seu ato criminoso, ao chamá-la de “meretriz assassina”. Com o intuito de convencer o público da necessidade da condenação da jornalista, o jornal também publicou em muitas matérias desses cronistas fotos da escritora, com título sugestivo “meretriz assassina” e veiculadas, não por um acaso em 1930, quando ela seria julgada.
Além de o adultério e trabalho femininos terem sido condenados pela maioria dos cronistas da época, outras questões também podiam ser levadas em consideração. Em 1930, Nelson Rodrigues, em uma de suas reportagens no jornal Crítica chamava atenção que era o avanço do feminismo no Brasil que causava tantos crimes no seio familiar. Este jornalista, que se posicionava contrário aos ideais feministas, considerava que enquanto nos tempos passados havia somente entre os homens “as lutas pela integridade da moral dos lares”, naqueles novos tempos de avanço do feminismo, as mulheres passaram a considerar que tinham o mesmo direito dos homens de cometer crimes contra eles ou contra suas amantes em prol da manutenção da célula familiar.
Mas, se a maioria dos cronistas, nos casos de adultério, tinha uma postura negativa em relação às mulheres que cometiam crimes contra seus maridos, nos casos dos maridos traídos que matavam suas esposas, se mostravam condescendentes com tais crimes, inclusive chamando as mulheres adúlteras como fazia Nelson de “lascivas e pecaminosas”.
Jornais da época; o escritor e jornalista, Nélson Rodrigues: ataque ao feminismo.