Por Natania Nogueira.
O poder público e a própria comunidade precisam ser lembrados de que o documento também é um patrimônio que precisa ser preservado, e cujo conteúdo pode ser usado para resgatar a memória e a história de uma localidade. A história local é um elemento formador, um componente importante da história de uma nação. O local remete ao particular, mas em geral, reflete as tendências globais. Pequenos “cacos” da nossa história são encontrados todos os dias. Outros tantos, infelizmente, estão perdidos no esquecimento, quando não são literalmente incinerados.
– Papel velho?
– Coloca fogo!
Muitas fogueiras foram alimentadas com documentos que remetem à história política, econômica e social do nosso país nas últimas décadas. Outros tantos ficam abandonados em porões insalubres, entregues à umidade, ao calor e à ação de insetos e roedores. Pensem na quantidade de livros, jornais, revistas, documentos oficiais, fotografias e filmes que já foram perdidos?
Os Arquivos Públicos brasileiros são receptáculos de toda a produção documental realizada pelos órgãos públicos. Espera-se que estes arquivos sejam locais onde a memória coletiva ou social esteja sendo preservada, dentro das exigências mínimas da legislação vigente, tanto em esfera nacional, quando estadual e municipal.
Mais do que simples depósitos de documentos, estes arquivos representam um produto social e um instrumento da administração pública para atingir o seu fim primeiro, que é o bem comum, o interesse público. A busca pelo bem comum está presente no texto constitucional, materializada na finalidade do art. 3º, que estabelece os objetivos da Constituição da República Federativa do Brasil.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ao oferecer à sociedade acesso irrestrito à informação, além de agilizar e facilitar a administração dos bens públicos, o Estado está contribuindo para o desenvolvimento social da nação. Os arquivos públicos fazem parte de um longo processo de construção da identidade nacional e regional. Os arquivos são uma parte integrante do patrimônio cultural da nossa sociedade, sendo, portanto, parte inalienável da nossa memória social.
Esta, infelizmente, não é bem a realidade. Os poucos arquivos realmente organizados nem sempre atendem à demanda, recebendo muito mais documentação do que podem tratar e disponibilizar. Por outro lado, não existe um compromisso político real da maioria dos municípios brasileiros em preservar seu patrimônio documental. Daí, as fogueiras se multiplicam.
– Livro velho tem cheiro de mofo e está ultrapassado.
– Olha só esse português! Está tudo escrito errado!
– Joga fora e compra um novo!
Nada contra os livros novos, mas os antigos são verdadeiras preciosidades. Infelizmente, bibliotecas inteiras já foram parar no lixo. Eu já testemunhei isso acontecendo. No final dos anos de 1990, uma família (da qual não recordo o sobrenome) encheu uma carroça de livros que faziam parte da biblioteca de uma fazenda e levou para uma escola onde eu trabalhava na época. A biblioteca aceitou alguns e recusou uma grande parte que ficou jogada debaixo de uma escada. Resolvi, bisbilhoteira como sou, ver se lá havia alguma coisa que pudesse me interessar.
Encontrei verdadeiros tesouros do final do século XIX e início do século XX. O que pude carregar, eu carreguei. Na época doei todos para o Arquivo Histórico da UFJF. Foram recebidos com festa. Não sei o que foi feito do restante. Infelizmente, não pude resgatar todos.
Lamentavelmente, temos preconceito contra o que é velho. Livros antigos e raros têm um elevado valor de mercado, mas um público restrito. Colecionadores que vão colocá-los em ambientes altamente controlados, mas que possivelmente jamais deixarão que outra pessoa possa manuseá-los. São documentos, testemunhos do passado, ora expurgados, ora encarcerados.
E não podemos esquecer nossos documentos vivos, nosso patrimônio humano, os idosos. Pessoas na terceira idade têm toda uma carga de informações baseadas na experiência e no testemunho que, sabiamente utilizados, são tão valiosos quando qualquer outro documento.Você tem paciência para ouvir as história da sua avó ou do seu avô? Acredite, eles pode te surpreender!
Algumas das conversas mais animadas que tive com minha avó e nunca esqueci foram justamente sobre casos da sua juventude. Um tesouro da memória que eu conservo comigo, mas que poderia ter sido maior se eu tivesse tido mais tempo, tivesse aproveitado mais o que ela podia me ensinar.
Eu vejo o aprendizado como algo estimulante e a gente pode aprender muito com o antigo. Ele possui uma aura de mistério. Leve fotos antigas para uma sala de aula e você verá como os alunos irão ficar empolgados, irão comentar, questionar e até se divertir. Quanto mais antiga melhor. Mostre uma edição rara de um livro ou de um jornal. O efeito não vai ser diferente.
Proponho, para finalizar, um exercício mental. Pensem nas bibliotecas, arquivos e museus que existem na sua cidade ou no seu município. Tentem imaginar os tesouros da nossa história que podem estar escondidos neles. Nós não merecemos conhecê-los? Será que não vale a pena a comunidade exigir o que lhe é de direito, o acesso à informação? Acreditem, pensar sobre o assunto pode ser o primeiro passo para a mudança. Grandes transformações pelas quais passaram a humanidade, para o bem ou para o mal, começaram com uma simples ideia.
A queima de documentos secretos da do período da Ditadura Militar é um exemplo excepcional. Muitos documentos oficias são queimados simplesmente por serem velhos e por não existir gestão de arquivos nos municípios. Imagem disponível em: http://zip.net/bcm3l3
Natania,
Seu texto é muito importante e nos remete a luta da ” perpetuação do conhecimento” versus a “cultura do imediatismo”.
“Herdamos” o conhecimento através de que mecanismos?
Será que estamos sujeitos à aquilo que Bourdier nos propõe : “o ensino nos moldes atuais produz a reprodução do sistema vigente”? Como podemos gerar indagações e suas respostas, quando o desenvolvimento do poder de analise baseai-se em acontecimentos de agora,no presente? Onde o critério do “atual” é imperativo?
Para tal façanha, os esforços empregados na manutenção e valorização de um documento histórico precisam ser constantes. Por outro lado, os próprios critérios de avaliação de um documento também são muito amplos.
Sendo assim, qual o melhor caminho para entender o q se preservar e o que se pode considerar descartável? Talvez mais uma vez, caiba mudar de “o descarte” para “o reciclo”.
Clifford Geertz, em sua obra “A interpretação das culturas” diz que a analise é portanto, escolher entre as estruturas de significação. Então, um novo olhar para tal atitude estaria em se perguntar quem poderia estar interessado neste ou naquele documento, e simplesmente envia-lo a quem tem condições e interesse de (res)guarda-lo. Cuja iniciativa tomada por vc, ilustra muito bem!
Tomo por exemplo, a importância do “cartaz” quanto documento para a história da publicidade. Cartazes de propaganda são documentos importantes principalmente os ligados às temáticas de ideologias de governo. Neles, em sua elaboração, se contém a utilização da semiótica, o estilo artístico do período e pode-se identificar a tecnologia de reprodução de um período, dentre outros aspectos.
Entretanto, para uma análise das campanhas de propaganda política, este é um material muito escasso, escondido muitas vezes sobre uma classificação genérica. Basta fazer uma busca nos arquivos para ver que praticamente são inexistentes.
Pena, né?
Bjks
Valeu , Kátia!
Você me deixou com ideias fervilhando, depois dessa análise ricamente embasada.
🙂
Adorei o texto! Tenho trabalhado esse assunto com meus alunos!
Simone, é importante trabalhar isso na escola, quanto mais cedo melhor. Os alunos gostam, traz a história par ao presente, pq a necessidade de preservação de documentos é uma ação do presente. Acho que falta esta identificação da nossa disciplina com uma realidade prática. Quando isso acontece duas coisas podem surgir: conscientização e interesse. Eu, particularmente, me empolgo muito mais com um aluno que descobre aos poucos o interesse pela história e pela participação social do que com uma aluno “nota dez”, preso ainda a um sistema que estimula a mera reprodução de conteúdo.
Olá, Natania!
Infelizmente ainda vai demorar muito para que nós, brasileiros, tenhamos a consciência da preservação. Conheço muita gente boa que diz: ” – Ih, quem gosta de passado é museu!” Coitados! Não sabem o quanto a História e a memória são úteis para o presente e para o futuro. O holocausto, a tortura na ditadura militar brasileira, a existência de grandes pensadores, tudo isso chegou aos dias atuais graças aos documentos.
A Revista de História da Biblioteca Nacional, na edição 101, publicou um documento que contem o resultado da autópsia de D. Pedro I, escrito pelo seu médico particular. Isso só foi possível graças a um colecionador que guardou essa raridade e a cedeu à revista.
Uma pessoa sem documentos legalmente não existe; o mesmo vale para uma nação.
Seus artigos, como sempre, são excelentes.
Um abraço.
Obrigada pelos comentários e pelo estímulo, Osvaldo!
🙂