Nos tempos das discotecas

        A historiadora Vanessa Rodrigues esclarece que o gênero musical norte-americano disco chegou ao Brasil entre os anos 1976 a 1979, e que o próprio nome disco deriva da abreviação da palavra francesa discothèque: “Invenção francesa de cerca de duas décadas (…) compõe-se de som de todo volume, decoração luxuosa (…) luzes estonteantes e bolhas de sabão que se desprendem do teto”, explicava a revista Veja em 1977.

      Como se percebe, a batida dançante e a discothèque eram indissociáveis por definição. “A disco ganhou amplitude nas grandes cidades brasileiras através dos espaços de sociabilidades voltadas para a diversão através da dança. Mas as discotecas estavam centralizadas nas grandes cidades no país e somente com a telenovela “Dancin’ Days”, da Rede Globo de televisão, a disco projetar-se-ia nacionalmente. A discothèque incentivou as discussões relativas à liberalização do corpo e gerou polêmica ao chocar-se com a engajada MPB no momento da abertura política. O debate acerca da função social da arte atingiu os compositores que dialogavam com o ritmo dançante disco. A polêmica recebeu o nome de Patrulhas Ideológicas e estabeleceu um impasse entre música para dançar e música para pensar”.

      Lembra ainda Rodrigues que “deve-se considerar fundamental o papel da Rede Globo de Televisão e da sua subsidiária a gravadora Som Livre no processo de recepção da disco-music brasileira. Ao inserir determinadas músicas nas trilhas sonoras das novelas a Globo conseguia unir um poderoso mecanismo de propaganda. Entre as telenovelas um caso excepcional de merchandising foi Dancing’ Days (1978/79) que amparou o sucesso da homônima canção tema e divulgou um conjunto de características da cultura disco. Deve-se lembrar que a Rede Globo, ao longo dos anos 1970, constituiu-se como a síntese da cultura nacional, pois monopoliza a audiência, especialmente após a implementação do Padrão Globo de Qualidade. Dessa forma, a Rede Globo se dispõe com força total no mercado publicitário, acompanhando de perto a aglutinação de investimentos desse setor na televisão”.

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     O historiador Marcos Napolitano explica que, desde o início do século XX, a dança representava o “elemento catalisador das reuniões coletivas, pois proporcionava excitação corporal. Se considerarmos a dança como a alegoria das relações sexuais de uma época, a década de 1970 deixou essa imagem: a mulher livre embalando o próprio corpo e o homem contorcendo-se em gestos que no passado eram tradicionalmente femininos. Mas o prazer estimulado pela liberação corporal veiculada nas canções disco rendeu-lhe desprezo por parte dos críticos. Essa repulsa foi causada devido à posição assumida pela música popular na década anterior, quando esteve mundialmente preocupada com as questões políticas e sociais. Sendo assim, a sua função social estava voltada para a conscientização dos ouvintes e não para o entretenimento. Os jovens dessa década preferiram usar o corpo, ao contrário de seus antecessores, que usaram o som e a voz. O movimento corporal foi a mais evidente forma de expressão da juventude dos anos 1970. Mais além, segundo Tárik de Souza, “a discothèque também corresponde (…) a uma troca de vícios: o descenso da contemplativa maconha pela cocaína, que concita à atividade e agitação”.

      No Brasil a disco music começou a ser divulgada nas discotecas, assim como ocorrera anteriormente nos Estados Unidos. A primeira discoteca brasileira foi a New York City Discoteque em Ipanema no Rio de Janeiro. Mas foi Nelson Motta que fez história ao inaugurar a Frenetic Dancin’Days Discothèque na mesma cidade no ano de 1976. No Dancin’ surge a primeira expressão nacional do gênero: as Frenéticas. Ao inventar o sexteto feminino, o jornalista abrasileirou a fórmula americana e transformou disco em discoteque. Além das luzes coloridas, do som ensurdecedor e do disc-jóquei, o Dancin’ possuía um importante diferencial, como descreveu Ana Maria Bahiana:

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“Por volta da meia-noite, depois mais uma vez, às duas, e por espaços cada vez maiores, a discoteca enlouquecia: as seis garçonetes que, minutos antes, se espremiam entre as mesas com imensas bandejas de vodca, caipirinha e sanduíches, estavam de repente no palquinho tipo tablado, pernas pra lá e pra cá, mais fingindo que cantando uma seleção infernal de rocks. O show das Frenéticas, aliado à notoriedade de Motta no meio artístico fez o Frenetic Dancin’ Days Discothèque atrair um imenso público e se transformar em febre no Rio de Janeiro, misturando ao jovem público da Zona Sul que enchia a casa, estrelas e personagens das noites cariocas, músicos, intelectuais e esportistas”. Mas, apesar do sucesso, o Dancin’ Days durou apenas uma temporada. Situada num bairro residencial do Rio de Janeiro os constantes problemas com vizinhos contribuíram para o fechamento da casa.

      O prazer, porém, das músicas dançantes ficou e mais: migrou para os “bailes”, nas cidades do interior. Maria, entrevistada pelo sociólogo Alcides Gussi, relembra: “…eu sentava na cadeira, adorava ver o povo dançar; para mim, aquilo era a coisa mais linda do mundo, você está entendendo? Era ver o pessoal dançar […] ninguém dançava música romântica, tudo agarradinho, mas tinham aquelas músicas de discoteca que eram um auê. Eu adorava escutar aquilo...[…] então a gente ia dançar, empurrava a mesa assim, e tinha as meninas, os meninos aqui, tudo aqueles passinhos pertinho, ensaiava a semana inteira aqueles passos para fazer bonito no baile”.

      Ainda segundo Napolitano, o final da década de 1970 as críticas ao fenômeno discoteque se assemelhavam ao ódio que a juventude engajada sentia pela jovem-guarda. Nos anos 1960 o “público estudantil avesso às formas culturais que pudessem ser relacionadas a uma indesejável ‘invasão cultural imperialista’ (…) o [iê-iê-iê] era uma forma musical tida como nefasta pelos setores nacionalistas, que a identificavam ao domínio cultural imperialista”. De fato, os festivais da canção que catapultaram expoentes da música popular como Edu Lobo, Elis Regina e Chico Buarque e músicas como “Para não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, tinham sido escanteados pelos músicos da Jovem Guarda, como Wanderleia, Erasmo e Roberto Carlos, ligados ao pop internacional que faziam imenso sucesso de público. Nas ruas, nas manifestações de oposição ao governo militar se ouviam os primeiros. Em casa, nas horas de lazer, nas festas e momentos de diversão, dançava-se ao som dos segundos. Nos anos 70, os tropicalistas nas figuras de Gilberto Gil e Caetano Veloso criticavam a ingenuidade dos músicos nacionalistas em querer, pela emoção, mobilizar o povo – como esclarece a socióloga Lucia Lippi Oliveira. A arte deveria ser agressiva e mobilizadora como se ouvia em ‘É proibido proibir”, título que remete à revolta dos estudantes franceses em maio de 68.

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      Os anos 70 foram marcados pela diversidade e fragmentação das tendências estéticas e culturais. Por isso mesmo, na década seguinte se ouvia de tudo: axé baiano, festa do Peão do Boiadeiro, o novo pagode dos anos 1980 e 1990 que vendeu milhões de CDs, o baião nordestino, tudo se conectava, se cavalgava. Comunidades e favelas, por exemplo, balançavam ao som dos bailes funks e soul.

  • texto de Mary del Priore.

Capa do disco com a trilha sonora da novela (Som Livre).

2 Comentários

  1. Sergio Luiz Leite Coelho
  2. Celina

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