Girls, coristas e vedetes: das atrizes às meretrizes

No início do século XX, ao expor com prazer seus corpos bem delineados, as “girls” fizeram recuar as fronteiras do pudor feminino. Para entender quem eram tais garotas, é preciso voltar atrás um pouquinho. No período que vai dos anos 1880 ao de 1910, a força do palco estava centrada na figura masculina. Dominava a “Revista do Ano” trocadilho de alusão sexual, que punha em cena a palavra sexualizada. Nem gestos, nem corpos. Muito menos corpos nus. Mas, sim, comediantes contando piadas alusivas a sexo e no limite do que a moral permitia. A insinuação era o mote do riso. Olhares maliciosos, gestos e inflexões alimentavam os subentendidos.

Na primeira fase do teatro de Revista, as “girls” que ainda se denominavam coristas, usavam meias grossas cor da pele. Os decotes eram discretos e os adornos pouco apelativos. O corpo cobria-se de fantasias e não se expunha. A partir da primeira década do século, a Revista do Ano foi substituída pelas Revistas e o enredo começou a ficar para trás. Em vez da piada, a música e a dança ganhavam espaço, logo, as coristas. Multiplicavam-se as chamadas Revistas-Carnavalescas em que o corpo balançava de forma diferenciada embalado por marchinhas destinadas à folia do Carnaval. A cadência acentuava o movimento das cadeiras, no rebolado feminino.

A presença de companhias estrangeiras em tournée pelo Brasil – a francesa de Madame Rasimi e a espanhola, Velasco – introduziu a valorização em cena de mulheres sedutoras, com braços e seios de fora, sem meias cor de carne. A fronteira entre a cena e os expectadores diminuía. Por meio da Revista, muita coisa vai mudar. No início do século, as fotografias exibiam coristas gordinhas, envoltas em indumentária farfalhante, que pipocavam na introdução ou conclusão da peça emoldurando o desempenho de astros e estrelas. As “gorduchinhas” simbolizavam o corpo feminino desejado, longe da estética de magreza que virá depois. Vestidas? Sim, pois um corpo sem roupas ainda representava mais anseios do que prazer. Eis porque se mostravam apenas algumas partes nuas. Tais partes despertavam desejos ocultos e aceleravam a imaginação: o corpo da corista era vestido exclusivamente para ser despido pelo olhar do espectador.

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Já o Teatro de Revista antecipou o corpo que apareceria com sua vestimenta original: a pele. O silêncio que antes recobria a sexualidade, rotulada como coisa suja e pecaminosa, começou a ser quebrado. As Revistas assumiram, a partir de 1920, um ritmo carnavalesco, adotando marchinhas e músicas da folia. O maxixe invadiu os palcos com requebrados e rebolados que colavam as coxas das mulheres às dos homens. Explorava-se uma transformação visível e visual da silhueta. Por suas posturas e adereços, as coristas manifestavam um profissionalismo, antes inexistente. Maquilagem, penteados e unhas vermelhas anunciavam a chegada de um novo corpo sexualizado. Nada a ver com o charme ou a sedução das senhoras casadas e burguesas que, certamente, não freqüentavam as Revistas.

Apesar do tom de brincadeira, nada mais se improvisava. Coreógrafos e artistas importados ensinavam as coristas a dançar. Vedetes como Otília Amorim, Margarida Max, Aracy Cortes e outras “girls” abandonavam as gorduras e mostravam corpos trabalhados através da dança, que enchiam os olhos gulosos do público. Em meio às nuvens de fumaça e cascatas d´água, eles amontoavam-se: cada vez mais esculturais. Propagava-se um imaginário influenciado pela modernidade: pernas de fora, jogos de sedução em cada gesto ou olhar, enfim, a quebra de tabus que anunciavam a mulher moderna.

No Rio de Janeiro, capital da República, Walter Pinto, produtor de teatro que iria revelar Dercy Gonçalves e Carmem Miranda, inventou uma escada em meio ao palco. Enquanto a platéia delirava, podendo examinar cada centímetro de carne exibida entre adereços apelativos, vedetes e girls desciam os degraus com majestade e de cabeça erguida. Apelando para o olhar masculino, a nudez feminina erigia-se numa forma de poder: o de dar prazer a alguns homens, membros de uma sociedade profundamente moralista. Um pouco mais tarde, as “certinhas” do Stanislau Ponte Preta, mulheres curvilíneas com biquínis minúsculos, as vedetes do Teatro Rebolado protagonistas de comédias como “Tem bububu no bobobó”, “Vem de ré que eu tô em primeira” ou as “jambetes” desenhadas por Lan, fariam delirar a imaginação masculina.

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Os limites da tolerância evoluíram rapidamente, durante os anos 50. A Revista passou a explorar cada centímetro de carne em toda a sua nudez. A tentação era de atingir o realismo cru. De ver mais e de mais perto até chegar à vertigem. Curiosamente, este desnudamento acelerado de vedetes e girls levou ao desmoronamento do gênero. Surgiu o strip-tease teatralizado. O palavrão e o sexo quase explícito invadiram o palco onde, antes a Revista deleitava, mas também divertia. O público mais contido fugiu. Não à toa, nessa época, para a maior parte das pessoas, atriz e meretriz rimavam.- Mary del Priore.

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As vedetes de Carlos Machado, 1958: desafiando moralismos.

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