Mães escravas, mães “de cor”*

As mães escravas, na sua grande maioria amantes passageiras, não tinham
seus nomes lembrados e, estando ausentes da documentação da época colonial, não permitem que
sondemos se foram lembradas em vida por seus senhores. Quanto a seus filhos,
não se sabe tampouco se, em algum momento, foram recompensados ou, se concebidos
sob coerção e violência, coube-lhes apenas o esquecimento por terem
nascido escravos.

O que se pode supor é que tais maternidades se engendravam a contragosto,
por apavorado constrangimento; mas é possível também que existissem certas
retribuições por serviços sexuais. Os benefícios de tantos sacrifícios eram bem
poucos. Mais além do sofrimento imposto pela condição mesma do escravismo, as
gratificações simbólicas que uma mãe negra poderia auferir equivalem a um triste
esgar: o status de ser concubina de um homem branco, os filhos de pele mais clara
e, por fim, a possibilidade mais concreta de liberdade. Luís Mott cita o caso da escrava
Maria do Egito, mulata de trinta anos, pertencente a Evaristo José Santana que assim
respondeu ao libelo da devassa efetuada no sul da Bahia em 1813: “sob promessa
de se libertar deixou-se levar de sua virgindade por amor único de gozar esse bem
maior […] a Liberdade”. Passada a carta de alforria, seu senhor “a teve por barregã
por mais de 14 anos”. Para cada concubina libertada, várias mulheres eram violentadas.

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A maternidade de escravas acentuava o caráter de exploração
física que sofreram tais mulheres. Seu sexo era utilizado para o desfrute e o prazer,
mas também para a reprodução, pois os filhos de escravas não deixavam de significar
um investimento para os seus senhores. Ao queixar-se ao juiz ordinário em 1799,
porque seu marido fugira com quatro escravos, Maria Leite de Almeida dá a medida
do que a mãe escrava podia significar no contexto colonial. Depois de explicar que o
cônjuge a ameaçara “com uma faca de ponta para me tirar a vida, por causa de andar
concubinado com uma escrava de que já tem um filho”, ela afirmava: “o excesso
que faz o suplicado para lhe entregarem os escravos, dizendo que não tem quem o
sirva quando nem ele nem seus progenitores nunca possuíram um escravo, e se lhe
derem a mãe de seu filho, ficará tão satisfeito que nem se lembrará que é casado”.
Estas eram as relações feitas de prazer e serviços e que, quem sabe, incluíam afeto
por ocasião das gestações.
A partir do século XIX, mães negras foram alvo de uma política natalista à base
de um discurso para fazê-las desejar a maternidade. J. M. Imbert, médico francês
que escreve aos fazendeiros brasileiros sobre como tratar esses “indispensáveis ao
trabalho da terra”, sugeria um prêmio para aquelas que “levassem com felicidade a
cabo sua gravidez”, repetindo as admoestações de Fénelon e Raynal, cujas diretrizes
encontraram receptividade entre os planteurs antilhanos no século XVIII.

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No quadro de solidão e abandono em que vivia grande parte das mulheres na
Colônia, os filhos eram o que, muitas vezes, de mais valor sobrava para as mulheres
que tentavam escapar de uniões incertas. Uma senhora da freguesia de Santo Amaro,
São Paulo, fora depositada em casa de seus parentes “apenas com seu filho menor
de ano e meio chamado Salvador, e unicamente com a roupa ordinária e caseira do
corpo”

A solidão habitava não apenas o interior de lares, mas também pairava como uma
ameaça de maridos coléricos que, não satisfeitos em terem abandonado suas esposas,
queriam interromper seus vínculos com a comunidade, e, para tanto, atacavam a
sua reputação. Foi o caso sucedido em Guaratinguetá, 1775, em que Ana Maria da
Assunção alegava sobre o marido, que embora sempre com ele tivesse feito

vida marital e dele tem três filhos e sempre o amou e serviu com afeto e obrigação,
[…] o dito réu não só dá má vida e maltrata a dita autora, mas também a desacredita
publicamente, dizendo que os filhos que dela tem não são seus filhos, culpando outras
pessoas injustamente e sendo a autora honesta e grave e gente branca e incapaz de
cometer semelhantes calúnias.

As “semelhantes calúnias” indicam o alto índice de ilegitimidade encontrado
entre mulheres de cor e evidentes nas listas de população e nos processos eclesiásticos.
Invocados por Ana Maria da Anunciação, que se dizia “grave e honesta”, portanto
gente branca, os filhos de parceiros ocasionais estigmatizavam-se como coisa
de gente-que-não-era-branca. E, portanto, nem grave nem honesta. Preconceitos
sociais e raciais traçavam a geografia de limites entre maternidades de segmentos
diversos, despertando um certo estranhamento no olhar de mulheres que viviam o
mesmo processo biológico, mas avaliavam-se pelas práticas e pelo cenário em que
suas maternidades eram vivenciadas.

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  • Texto de Mary del Priore. Baseado em “Ao Sul do Corpo”, Editora José Olympio, 1993.

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Imagem: IMS.

*expressão de época.

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