A história permite aos homens perguntarem-se: de onde viemos, para onde vamos, quem somos? Para a primeira questão, a resposta é certa: “No começo era a mãe; o verbo veio mais tarde”. Se não tivéssemos conhecido o ato de partilhar cuidados e ternura, não estaríamos vivos. A história do homem é, portanto, a história de suas mães, a história das mulheres.
No Brasil, a imagem da mãe é assunto sagrado há 400 anos. As mães são personagens de novelas de televisão, são invocadas em para-choques de caminhão, pontilham o adagiário e as expressões cotidianas; políticos em seus discursos referem-se às suas mães como “santas”. O “Dia das Mães” significa um imbatível estimulador de vendas para o comércio e teses científicas sustentam que a sociedade brasileira considera a maternidade uma atividade essencial. A maternidade ultrapassa, portanto, dados simplesmente biológicos; ela possui um intenso conteúdo sociológico, antropológico e uma visível presença na nossa cultura. Conhecer, portanto, a história de nossas mães, talvez seja a melhor maneira de homenageá-las como mulheres e base fundadora de nossa sociedade. Mas, além de conhecer a história de nossas antepassadas, é igualmente importante saber o quanto é duro nascer e ser mulher.
Os demógrafos têm demonstrado que em todo o mundo, não importa o indicador, o estatuto das mulheres é inferior ao dos homens. O tamanho das desigualdades varia. Se nos países ocidentais a discriminação em relação às mulheres tem a ver com o mercado de trabalho e, eventualmente, com a participação das mulheres na vida pública, em outros lugares o preconceito é de outra natureza: acesso desigual à educação (no Afeganistão ou em Burkina Faso), o infanticídio de meninas (na China, como consequência da política de filhos únicos), violências específicas (a excisão praticada na África; o estupro, como na guerra da Bósnia; as argelinas degoladas). De forma planetária, as mulheres são consideradas seres desiguais na vida ou na morte, no desemprego ou na herança, porém há algumas boas notícias em meio a deprimentes constatações: um pouco em toda a parte, as mulheres já têm direito ao voto.
A Nova Zelândia inaugurou essa possibilidade em 1893, e, em 1994, quando enfim as sul-africanas tiveram acesso às urnas. É importante sublinhar que não existe correlação direta entre a prática democrática e a porcentagem de mulheres eleitas. Na Coreia do Sul, onde as mulheres votam desde 1946, são 20% nas assembleias. Os índices na França ou no Brasil são baixíssimos. Como bem diz o estudioso Jacques Vèron, “Quando nascem, as mulheres beneficiam-se da vantagem teórica de viver mais tempo que os homens. Mas, às vezes, é difícil para uma mulher viver e até mesmo, nascer”.
E a situação em nosso país, qual é? Voltadas ao silêncio da reprodução, recolhidas à mesmice do mundo doméstico, nossas mulheres teriam ao menos uma história? Nossas ancestrais índias, por exemplo, educavam seus filhos e usavam práticas mágicas para cuidá-los nas suas doenças. Nossas bisavós namoravam à base de pisadelas e beliscões trocados furtivamente dentro das igrejas. Nossas avós negras ganhavam a vida com costura, fabrico de doces, rendas e fios que eram vendidos em tabuleiros pelas ruas. Houve ainda aquelas que, por pobreza, foram obrigadas a abandonar seus filhos à porta da Santa Casa de Misericórdia com um bilhetinho no qual indicavam o nome do pequerrucho, a fim de identificá-lo nos dias melhores em que pudessem vir buscá-lo. Nossas avós no sertão do Nordeste alternavam-se entre fazer renda, roçar ou carregar água ou dar aulas de piano e solfejo para garantir o sustento dos seus. E aquelas do Sul acompanhavam pelos jornais os “Dez mandamentos da mulher”.
No momento da emergência de uma vida burguesa no Brasil, houve aquelas que liam trechos de poesia em voz alta e que povoavam os sonhos dos homens, na forma de personagens de romance, belas de cujos lábios nossos avôs sorviam beijos voluptuosos. Houve mulheres que acabaram, elas também, tornando-se escritoras, lutando pelo abolicionismo, pela República, pelo feminismo e que buscavam a valorização do gênero. E aquelas que foram “professorinhas” e que acreditavam que “as mulheres deviam ser mais educadas do que instruídas, pois são o pilar que sustenta o lar”. Houve tantas pobres, aviltadas pela violência e miséria na qual viviam e que davam respostas diante do drama que lhes impunha sistema.
Hoje tantas mulheres tentam equilibrar a precariedade do laço conjugais com a dupla jornada de trabalho: dentro e fora de casa. No campo prossegue a história daquelas que, há muito, criam seus filhos “debaixo dos pés de café”, lutando contra a modernização da agricultura. A história de nossas mulheres é também aquela de loucas, de prostitutas, de homossexuais, de anarquistas, de rebeldes cujos papéis sociais continuam a contrariar o ideal feminino que lhes é cobrado pela sociedade em que vivem.
Mas, afinal, poderíamos nos perguntar para que serve a história de nossas mães ou avós? E a resposta viria simples: para fazê-las continuar a existir, viver e ser. Essa é, afinal, uma das funções potenciais da história. Não cabe fazer a história das mulheres por meio de erros ou acertos sobre o seu passado, contar a saga de heroínas ou mártires, o que seria de um terrível anacronismo. O que importa é desvendar as tensões, contradições e negociações que se estabeleceram, em diferentes épocas, entre elas e seu tempo; entre elas e a sociedade na qual estavam inseridas. Trata-se de desvendar hoje as complexas relações entre a mulher, a sociedade e o fato, mostrando como o ser social que ela é articula-se com o fato social que ela mesma fabrica e do qual é parte integrante. Significa também transmitir-lhes uma mensagem de alegria, fazendo-as perceber o quanto sempre foram fundamentais para a construção de nosso país, de nossa cultura, do que somos e seremos. De sua contribuição no passado, contribuição feita de coragem, amor e criatividade, nasceu a mulher que hoje aí está transitando de um papel social a outro, sendo simultaneamente mãe, amante, mulher, profissional, enfermeira, professora, cozinheira, enfim… tudo!
Mulher que procura afastar os seus entes queridos do gosto amargo da vida, oferecendo-lhes leite, mas também mel. Afinal, no começo de nossas sociedades, era a mulher, a mãe; o verbo só veio mais tarde! – Mary del Priore
“Madona e criança”, de Pompeo Batoni.
Sou psicóloga e terminando um Curso de Formação em Terapia de Família e Casal Sistêmica e iniciando um Curso sobre Mulher. Interesso-me muito pelo tema do feminino. A minha monografia do curso tem como base um trabalho que irei apresentar no Congresso de Terapia de Família que trata sobre violência doméstica intitulada “Ruim com ele, pior sem ele”. Muito importante ter o referencial histórico e social, porque também o universo “psi” foi e é atravessado por essa cultura machista. Agradeço pelas importantes contribuições com seus textos e livros. Um grande abraço