Ah! O amor…este milagre de encantamento, espécie de suntuoso presente que atravessa os séculos. Espécie de maravilhamento sobre o qual somente os artistas, e talvez os amantes, possam nos dizer alguma coisa. Feito de encontros inesperados ou de acasos favoráveis ele é como um choque violento que eletriza, torna cego, encanta. Deixa-nos perdidos. E – tarde demais – perdidamente enrolados. O choque provoca reações em cascata: desejo ou paixão que se manifestam na impaciência dos olhos, do coração, de todo o corpo. Fabricada por aparições, cartas, telefonemas, esta concentração sobre um objeto, esta nostalgia de um lugar utópico, enfim, reencontrado, se traduz na descoberta de um ser que passa a ser o único bem, a pátria, enfim, o centro de tudo!
Os amantes, por sua vez, gozam de sentimentos inexplicáveis de ordem irracional ou inconsciente. Sofrem emoções como quem sofre golpes. Passam por mil martírios. Descobrem-se vítimas de uma ferida recebida sem que se saiba como. Seu sentimento é inexplicável e, portanto, inexprimível salvo pela literatura ou pela poesia, cujo jogo retórico, metáforas e figuras de estilo nos falam de um amor, que se quer singular, excepcional, reconhecível entre mil outros amores. Um amor que busca romper com velhas receitas, com fórmulas banais e com os clichês que se lhe impõem os costumes, as leis e as rotinas sociais. Amar é antes selecionar o eleito do coração. É notar, é colocar a parte, é singularizar. Um, ou uma, entre todos. Um rosto, um nome. Isto implica a seleção que entroniza o objeto como excepcional. O eleito é distinto: superior como um rei ou distante como uma estrela. O amor, dirá, finalmente, alguém, é um problema de vida, de ordem sensível, de estética e poética e não de conceitos.
Assim como outros imperativos – comer ou beber, por exemplo -, o amor e suas práticas estão inscritos em nossa natureza mais profunda. Cada cultura lhe reserva um espaço privilegiado em seu sistema, representando-o à sua maneira. Há quem diga até que ele é uma invenção do Ocidente. E o amor não muda só no espaço, mas, no tempo também. O de ontem, não é o mesmo de hoje. Isto porque diferentemente dos tubarões, o amor e as formas de amar se transformam ao longo dos séculos. Seria possível entrever, graças à história, como se comportaram nossos ancestrais em relação a este sentimento? Como viveriam prazeres e dores em suas vidas? Conseguiríamos surpreender quais paixões ou simples brincadeiras amorosas podem ter provocado de experiência, de felicidade ou de dramas pessoais na vida de nossos antepassados? Qual a natureza da intimidade entre homens e mulheres? Onde se colocava o desejo? Nossa vida amorosa é diferente da dos nossos avós?
Diferente, sim, sem sombra de dúvidas. Desde os anos 70, inúmeras transformações ocorridas no campo dos costumes e da vida privada, não deixam dúvidas quanto ao assunto. A pílula e as discussões sobre o aborto, o feminismo e os movimentos de minorias, a progressão das uniões livres, os corpos nus expostos na mídia e na propaganda, enfim, a liberação da palavra e do olhar mudaram a vida das pessoas e sua maneira de ver o amor. Tal movimento de emancipação de corpos e de espíritos inscreve-se, contudo, na história. Ele começou nas últimas décadas do século XIX, quando as ideias do casamento por amor e da sexualidade realizada se tornaram um dos pilares da felicidade conjugal. Até então, o Ocidente cristão, e nele, o Brasil, vivia uma era de constrangimentos e recalques quase sem limites. Quinhentos anos antes, momento da chegada dos portugueses ao nosso litoral, teólogos fulminavam de suas cátedras contra tudo o que dissesse respeito ao corpo, recusando a noção de prazer e exaltando a virgindade. Esta ética sexual se impôs com maior ou menor rigor, dependendo de épocas e lugares por muito tempo. E ela impregnou as mentalidades. Ao associar sexualidade e pecado – o que se fazia até meados do século passado – ela impedia que amor e sexo se dessem às mãos.
Exatamente em função da eficácia desta cruzada moral contra a associação entre amor e sexo, entre corpo e alma, diversos autores consideram que o amor romântico, tal como o conhecemos, é um fenômeno tardio. Ele teria surgido, apenas, durante processo de industrialização e urbanização que teve lugar na Europa do século XVIII. Historiadores britânicos afirmam que “o amor como base do casamento”, talvez seja a mais importante mudança nas mentalidades, ocorrida no limiar da Idade Moderna ou possivelmente nos últimos mil anos da “história ocidental”. Já os franceses concordam com que uma “revolução afetiva teria se localizado predominantemente no século XVIII e início do século XIX”, modificando radicalmente os sentimentos amorosos.
É como se tivéssemos passado de um período em que o amor fosse uma representação ideal e inatingível, – a Idade Média -, para outra em que vai se tentar, timidamente, associar espírito e matéria, – o Renascimento. Depois, para outro, em que a Igreja e a Medicina tudo fazem para separar paixão e amizade, alocando uma fora, outra dentro do casamento, – a Idade Moderna. Deste período, passamos, ao Romantismo, do século XIX, que associa amor e morte, terminando com as revoluções contemporâneas, momento nos quais, o sexo tornou-se uma questão de higiene e o amor parece ter voltado à condição de ideal nunca encontrado.
Tais interpretações justificam plenamente que nos perguntemos, assim como já foi feito no estrangeiro, qual os amores que, ontem e hoje, nos fizeram ou fazem amar. Não só porque o amor e suas práticas tornaram-se um tema insistente de nossa sociedade, mas, também, pois há pelo menos quinze anos, historiadores fizeram da sexualidade um objeto de história aproximando-se, graças aos arquivos judiciários, a literatura, a correspondência e documentos de toda a sorte, das práticas amorosas e sexuais de nossos ancestrais. A vida privada com tudo que ela envolve de sentimentos, não escapou, em todo o mundo, como entre nós de uma lenta evolução de mentalidades e de atitudes. Um prato cheio para pesquisadores curiosos!
Um deles, Luís Felipe Ribeiro sintetizou bem ao dizer que no passado, as pessoas “não davam” mas, se davam. Hoje, elas “dão”, mas, não se dão. Tem razão. Se a revolução sexual foi, antes, considerada uma libertação frente às normas de uma sociedade puritana e conformista – a burguesa e vitoriana – ela, hoje promove uma sexualidade mecânica, sem amor, reduzida à busca do gozo. Já há quem diga que, tal banalização está levando a um contra-ataque: uma corrente neoconservadora, nascida nos anos 90 nos EUA, começou a reagir contra as derivas do liberalismo sexual. Não iremos tão longe.
O amor é um sentimento que, como diz o poeta, pode ser tão violento, tão terno, tão desesperado, verdadeiro, belo, e depois, tão pisado, tão machucado e esquecido. Histórias deste amor para sempre e, também, histórias de amor para nunca mais.
Texto de Mary del Priore.
“O Beijo”, de Francesco Hayez. (1859)