A nudez e seus significados

1500: Renascimento na Europa e chegada dos portugueses ao Brasil. Na pintura,  ao colocar o homem no centro do mundo – e não mais Deus – o Renascimento descobre o nu. Sinônimo de erotismo? Não. Isto significa que as palavras, os conceitos e seus conteúdos mudam, no tempo e no espaço. O que  é erótico, hoje, não o era para nossos avós.

 Comecemos por um exemplo bastante conhecido. Ao desembarcar na então chamada Terra de Santa Cruz, os portugueses impressionaram-se com a beleza de nossas índias: pardas, bem dispostas, com cabelos compridos, andando nuas e “sem vergonha alguma”. A Pero Vaz de Caminha não passaram desapercebidas as “moças bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas”. Os corpos, segundo ele, “limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais ser”. Os cânones da beleza européia se transferiam para cá, no olhar guloso dos primeiros colonizadores.

Durante o Renascimento, graças à teoria neoplatônica, bondade e beleza, caminhavam de mãos dadas. Vários autores, como Petrarca, por exemplo, trataram desse tema para discutir a correspondência entre Belo e Bom, entre o visível e o invisível. Não é a toa que nossas indígenas eram consideradas, pelos cronistas seicentistas, criaturas inocentes. Sua nudez e despudor eram lidos numa chave de desconhecimento do mal, ligando, portanto, a “formosura” à idéia de pureza. A questão da sensualidade não estava posta aí.

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Nuas em pêlo, as “americanas” se exibiam, também, nas múltiplas gravuras que circulavam sobre o Novo Mundo. Os seios pequenos, os quadris estreitos, a cabeça coroada por plumagens ou uma coroa de frutas tropicais, os gravadores do Renascimento as representavam montadas ou sentadas sobre animais que os europeus desconheciam: o tatu, o jacaré, a tartaruga. Mas aí, a nudez não era mais símbolo de inocência, mas, de pobreza. Pobreza de artefatos, de bens materiais, de conhecimentos que pudessem gerar riquezas. Comparadas com as mulheres que nas gravuras representavam o continente asiático ou a Europa, nossa América era nua, não porque sensual, mas porque despojada, singela, miserável. As outras alegorias se exibiam ornamentadas com tecidos finos, jóias e tesouros de todo o tipo. Mesmo a África, parte do mundo mais conhecida no Ocidente cristão do que a América, trazia aparatos e mostrava-se gorda – sinônimo de abundância e beleza, numa época em que “gordura era formosura”.

O retrato das americanas, além da magreza e da nudez, ostentava sempre um signo temido: os ossos daqueles que tinham sido devorados nos banquetes antropofágicos. Nudez, pobreza e antropofagia andavam de mãos dadas. As interpretações, então, se sobrepunham: passou-se da pureza e inocência à pobreza e horror desta gente que comia gente. Pior. À medida que os índios resistiam à chegada dos estrangeiros, aprofundava-se sua satanização.  Para combatê-los ou afastá-los do litoral, nada melhor do que compará-los a demônios. A nudez das índias, estava, pois, longe de ser erótica.

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Desde o inicio da Colonização lutou-se contra a nudez e aquilo que ela simbolizava. Os padres jesuítas, por exemplo, mandavam buscar tecidos de algodão, em Portugal, para vestir as crianças indígenas que freqüentavam suas escolas e os adultos catequizados: “Mandem pano para que se vistam”, pedia padre Manoel da Nóbrega em carta aos seus superiores. Aos olhos dos colonizadores, a nudez do índio era semelhante à dos animais; afinal, como as bestas, ele não tinham vergonha ou pudor natural. Vesti-los era afastá-los do mal e do pecado. O corpo nu era concebido como foco de problemas duramente combatidos pela igreja, nestes tempos: a luxúria, a lascívia, os pecados da carne. Afinal, como se queixava padre Anchieta, alem de andar peladas, as indígenas  não se negavam a ninguém.

Sendo a roupa, o envelope do corpo, como seria andar nu? Com a pele em contato com o vento e o sol, as partes vergonhosas expostas, os índios inspiraram ao padre Anchieta, tiradas de muito humor: “de ordinário andam nus e quando muito vestem alguma roupa de algodão ou de pano baixo e nisto usam de primores a seu modo, porque um dia saem com gorro, carapuça ou chapéu na cabeça e o mais nu; outras vezes trazem uma roupa curta até a cintura sem mais outra coisa. Quando casam vão às bodas vestidos e à tarde se vão passear somente com o gorro na cabeça sem outra roupa, e lhes parece que vão assim mui galantes”.

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Mas que significado teria o nu, na Idade Moderna? Havia, então, uma grande diferença entre nudez e nu. A primeira, referia-se àquelas que fossem despojadas de suas vestes. A segunda, remetia, não à imagem de um corpo transito e sem defesa, mas ao corpo equilibrado e seguro de si mesmo. O vocábulo foi incorporado, no século XVIII, às academias de ciências artísticas onde a pintura e a escultura faziam do nu o motivo essencial de suas obras.

– Mary del Priore

“Retrato de Jovem Mulher” de Rafael Sanzio (1540-45).

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