Cotidiano, permanências e rupturas no Rio de Janeiro á época da chegada da família real

É sabido que a transmigração da Corte, de Lisboa para o Rio de Janeiro provocou transformações significativas na evolução econômica, na vida social e cultural e na estrutura da colônia. Algumas delas atingiram a fundo à sociedade, especialmente no que diz respeito ao poder central, sendo a maior preocupação a de perpetuar no Brasil a estrutura do governo centralizado e o sistema absoluto da monarquia portuguesa. Mas, não só. Outros aspectos da vida de pequenos atores anônimos da história foram, pouco a pouco, sendo modificados por esta – pelo menos para eles – “inesperada” viagem. Foram raros os estudos realizados sobre a vida cotidiana neste período para que pudéssemos constatar o impacto que significou uma tal ruptura no horizonte dos personagens locais e de seu dia a dia.

Afinal, num certo março de 1808, a Colônia amanheceu Metrópole. Mestiçou-se mais ainda. Para usar uma expressão e um conceito caros à Serge Gruzinski, a colônia globalizou-se.A Europa se fundiu mais ainda à América, já africanizada. Teve início um processo cujas discretas marcas, mais tarde, colocariam em cheque as relações do Brasil com Portugal. Viveu-se a partir de então, uma aceleração das comunicações, uma evolução das técnicas, um encontro de novos atores urbanos que pouco a pouco mudou a cara da cidade e de seus habitantes.

Nosso foco será a vida cotidiana dos que aqui viviam. Para observá-los, estaremos privilegiando os quadros locais, as práticas ordinárias, a maneira de se apropriar de seu environement e de transformá-lo. Tal como Alf Lüdtke vamos propor, ainda que de forma breve, o estudo das regularidades, dos fenômenos repetitivos, de  suas variações e evoluções, retomando o vivido ou a experiência social dos atores sociais ao longo do tempo. Entenderemos a rotina como o mecanismo que soldava a estabilidade das estruturas sociais.

Vale dizer que a retomada de interesse pelos atores anônimos não é apenas uma versão historiográfica do “retorno ao indivíduo” que marcou o pensamento filosófico e afetou uma boa parte das ciências sociais nos anos 80. Ela não traduz apenas uma perda de confiança em abstrações tais quais “a sociedade” ou “o social”. Ela manifesta de maneira mais profunda – e interessante, também – a vontade de compreender como os processos sociais globais foram apropriados pelas trajetórias individuais ou de grupos. É no nível dos comportamentos cotidianos, corriqueiros e ordinários que apreendemos melhor os processos relacionais que estão por baixo das formas de agregação social. Verdadeiro laboratório de uma nova história social, os modelos de análise de uma tal abordagem se inspiram da história antropológica, abordagem que propõe uma compreensão das sociedades a partir do estudo de práticas cotidianas e das relações entre indivíduos.

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Quando os Bragança desembarcaram no Rio de Janeiro, a cidade era, então, considerada um dos portos coloniais mais bem localizados do mundo. As facilidades de intercâmbio com a Europa, América, África, Índias Orientais e as Ilhas dos Mares do Sul indicavam, – segundo o Marques de Alorna, veador da Casa Real, – um grande elo de união entre o comércio das variadas regiões do globo. Dominando vastos recursos, precisava apenas de um governo eficiente, que lhe desse prestígio político. A transmigração, realizada em março de 1808, parecia consolidar o sonho do renomado marechal-de-campo e conselheiro de D. João.

Apesar das fantasias sobre as belezas naturais e possíveis riquezas, para quem chegasse a esta parte do mundo, a realidade se impunha rapidamente. Muitos viajantes vindos de cidades européias registraram em seus diários e anotações impressões sobre um panorama material e cultural dos mais desoladores. Pouco tempo havia que os senhores de terras, plantadores e agricultores ricos, tinham saído de seu exílio, deslocando-se do interior ou de pequenas cidades onde viviam, atraídos pelo brilho do porto do Rio de Janeiro e do que viria ser a nova Corte.

Para os que aportavam ou migravam para a cidade, havia, sim, o impacto positivo da paisagem da baía de Guanabara, um tanto amplificado pelos meses de longa viagem, por terra ou por mar. O contato com a natureza exuberante fazia viajantes e imigrantes evocarem a serenidade dos ares, a vegetação colorida, o recorte das serras, partes, enfim de um mundo natural edênico. Mas o exotismo pintado por obras que circulavam na Europa e inflavam a imaginação, passava longe das realidades urbanas. No Rio de Janeiro, tudo era “horrivelmente sujo!”, fétido e abandonado. Cercado de mangues e charcos, o burgo sofria com a falta d´água e de higiene. Nas crônicas de viagem, as primeiras observações sobre a vida material, eram sempre, ou quase sempre, desabonadoras.

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Mas era exatamente pelas ruelas estreitas, por praças sem decoração, por caminhos cheios de mato que levavam para dentro e fora da cidade que o cotidiano de milhares de seus habitantes se construía. O olhar panorâmico dos estrangeiros não captava, contudo, o formidável movimento que propulsionava toda a sorte de indivíduos, moradores deste porto. A rápida intensificação do processo de urbanização, o aumento populacional e a passagem de uma economia fechada para uma aberta se fizeram acompanhar de reflexos nos mais variados grupos sociais.

A massa anônima, independentemente da aparente pobreza com que era vista por estrangeiros, traduzia movimento, trabalho e esforço. Origens e cores se misturavam, mas, também, as línguas, as atividades, as crenças e as ideias. Gente e coisas, objetos e pessoas se acotovelavam como nunca dantes o fizeram entre nós. Os moradores reagiram aos desafios das portas que se abriam para o mundo e, mobilidade e nomadismo, precariedade nas ligações, passagens de uma cultura a outra, multiplicidade de referências quase nos permitem inferir que, por trás da penúria material, descrita pelos estrangeiros e repetida nos manuais de história, se gestava um singular cosmopolitismo tropical.

O mesmo olhar panorâmico de estrangeiros e viajantes enxergaria entre nós, não só o encontro de culturas, mas, também o de tempos: arcaísmo e modernidade, permanências e mudanças se deram as mãos nestas primeiras décadas do Oitocentos. Se o público era o espaço das transformações no cotidiano, o privado, seguia o lugar da tensão entre a repetição e a novidade. Gilberto Freyre lembrou, muito bem, que os sobrados funcionavam como verdadeiros bastiões de resistência à mudança. Inventários e testamentos, publicados ou inéditos, somados aos anúncios de jornal (A Gazeta do Rio de Janeiro) e cruzados com o olhar dos viajantes (devidamente analisados) restituem um painel rico sobre hábitos cotidianos, notadamente os vividos dentro dos sobrados, alterados pela chegada da Corte.

Nos sobrados, visitas eram sempre esperadas. As dos mascates, aguardadas ansiosamente. Com seus armarinhos às costas, repletos de produtos comprados às embarcações atracadas no porto da Estrela, repletas de mercadorias, agora importadas: meias de seda, fitas coloridas, rendas francesas. Mas se as mulheres compravam as novidades, as práticas de sociabilidade eram as mesmas de suas avós: nas conversas se costuravam alianças, se trocavam informações sobre pretendentes disponíveis, se comentavam casamentos, nascimentos e mortes. Mas, também, se intercambiavam remédios. Repetia-se o aviamento de muito remédio preparado à base de plantas como o poejo, hortelã, macela e camomila, levando mel ou açúcar.

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O entardecer, pertencia à tradição e às permanências: a família encabeçada pela matriarca se reunia para observar o movimento da rua pelas janelas. Nos arredores do sobrados, trabalhadores cruzavam mulheres carregando potes d’água na cabeça. Sentadas no batente de suas moradas, outras mulheres catavam a cabeça de crianças, sobre esteiras de piripiri. Outras, ainda, trabalhavam nos bordados, batendo bilros em suas almofadas ou bolos para vender, que eram cuidadosamente embrulhados em papel caprichosamente recortado.

Dentro de casa, frente aos oratórios com suas grandes portas abertas e pintadas com santos, mulheres se reuniam para rezar. O jardim também era um espaço feminino no sobrado.Enfatizando a tradição e a permanência, nos arredores da cidade, muitos sobrados tinham inúmeras indústrias caseiras tocadas exclusivamente por mulheres: a do preparo da rapadura, aguardente e melado. A da mandioca. A do algodão do qual se fazia roupas de escravos, lençóis, sacarias e outros misteres.O tear era também utilizado para uma outra tecelagem; a da lã, proveniente das ovelhas criadas nas fazendas dos arredores da Corte, de acordo com as necessidades. Empregava-se aquele artigo principalmente na confecção de mantas ou cobertores, de timões ou japonas para a proteção dos escravos contra a quadra fria do ano. E diga-se, no referido gênero de tecelagem havia certa dose de arte africana, na distribuição das cores e da padronagem.

Outras pequenas indústrias que ocupavam o cotidiano do sobrado ancoradas na tradição: a fabricação de velas com aproveitamento de sebo dos bovinos e ovinos abatidos para a alimentação. A do sabão de cinzas, preparado com gorduras, sais de potassa e cinzas de plantas especializadas, de preferência pau-d’alho ou Guararema. As candeias consumiam o “azeite feito em casa” proveniente da mamoeira ou da carrapateira, embora já se vendessem azeites finos para iluminação. A farinha de milho ou fubá, por sua vez, continuava a se obter da moagem do cereal, feita em moinhos de pedra sobre rodinhas, acionados a forte jato d’água. – Mary del Priore

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Paisagem do Rio de Janeiro e retrato de Carlota Joaquina: Nicolas-Antoine Taunay.

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