Casamento dos ricos

 

E os príncipes se casaram, tiveram muitos filhos e foram felizes para sempre? Não necessariamente. Em nossa história, a sonhada harmonia depois do casório, só nos contos de fada. A começar pela escolha do príncipe, digo, do parceiro. Quem casava com quem? Desde o século XVII, manuais de casamento – livros em que se prescreviam as melhores regras para consumar o matrimônio com sucesso – procuravam fornecer orientação na hora da escolha matrimonial. O importante era casar com um “igual”. Daí serem comuns as núpcias entre parentes próximos, primos e até meios-irmãos.

Graças aos casamentos endogâmicos, as famílias senhoriais aumentavam a área de influência, aumentando também o patrimônio: terras, escravos e bens. O casamento com “gente igual” era altamente recomendável, e poucos eram os jovens que rompiam com essa tradição. O autor de um desses manuais (o Guia de casados), dom Francisco Manoel de Melo, recomendava em 1747: “uma das coisas que mais podem assegurar a futura felicidade dos casados é a proporção do casamento. A desigualdade causa contradição, discórdia. […] Perde-se a paz e a vida é um inferno. Para a proporção dos pais, convém muito a proporção do sangue; para o proveito dos filhos, a da fazenda; para o gosto dos casados, a das idades”.

O Guia queria dizer que as pessoas não podiam ter origens sociais ou religiosas diferentes; casamentos de pobre com rico, de branco com negro ou de católico com judeus ou muçulmanos eram severamente criticados, por isso se falava tanto em “proporção”, isto é, em harmonia, igualdade. A igualdade da “fazenda”, ou seja, dos bens possuídos, era fundamental para assegurar que os filhos continuassem tão ricos quanto os pais. A diferença de idades era combatida, pois se um velho rico se casava com uma mulher bem mais moça havia o risco de esta, depois de enviuvar, gastar o dinheiro com outro homem mais moço.

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É em virtude dessa mentalidade que tantos ditados populares, até hoje, condenam esse tipo de matrimônio: Velho apaixonado, com pouco está cansado; Velho com amor, morte em redor. Além, é claro, dos ditados que recomendam o que seria “certo”: Casar com os de sua igualha; Casa tua f­ilha com o filho de teu vizinho; Casar e comprar, cada um com o seu igual!

Outro ponto importante? Os predicados morais da mulher, segundo o Guia: “seja, pois, a mulher que se procura para esposa formosa ou feia, nobre ou mecânica – trabalhadora braçal –, rica ou pobre; porém não deixe de ser virtuosa, honesta, honrada e discreta”. E mais: “a mulher não tem autoridade sobre o seu próprio corpo – é o marido que a tem”. A submissão feminina fazia parte do contrato.

Outra dificuldade, além de achar o parceiro certo, era o preço da cerimônia. Casar, no Brasil colonial, custava uma fortuna, além de ser uma trabalheira para conseguir todos os papéis exigidos pela Igreja. Foi o que ocorreu, por exemplo, com certo João Romão. Nascido em um vilarejo da Serra da Estrela em Portugal, decidiu conhecer a famosa Terra de Santa Cruz. Chegando ao Rio de Janeiro em 1703, partiu logo para Minas em busca de ouro. Em São Paulo, conheceu certa Gertrudes, com quem resolveu se casar. Só que os papéis de que João precisava para realizar a união tinham ficado lá na “terrinha”. O mais importante deles era o atestado de batismo, que comprovava ser ele católico, apostólico e romano. Nessa época, os navios demoravam de 40 a 45 dias para trazer e levar informações, isso sem contar o tempo de ir ao interior de Portugal, subir a serra para chegar à pequena aldeia e procurar os ditos papéis.

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O próximo passo eram as “provisões”. Esse documento determinava uma investigação cuidadosa na vida dos noivos para examinar se haviam se casado antes, se moravam naquela paróquia há muito tempo ou se tinham algum laço de parentesco. Aos viúvos, exigia-se o atestado de óbito do primeiro cônjuge. A investigação era fundamental, pois não foram poucos os homens como João Romão, que deixavam as legítimas esposas em Portugal. Quando chegavam à terra ensolarada do Brasil, enrabichavam-se por uma bela mulata e passavam a viver amancebados. Depois de muitos anos de vida e alguns filhos, decidiam casar-se. Alegando não ter papéis, presumindo viuvez, contraíam matrimônio, mas, na realidade, eram bígamos.

Houve outros casos em que os noivos se aproveitavam do casamento para enriquecer. Saíam pobretões de Portugal, vindo para cá em busca de ouro nas Minas Gerais. Como não achavam o metal dourado, passavam a procurar uma rica herdeira que quisesse se casar com um homem branco chegado do Reino. As razões para a bigamia foram várias, a maior parte delas decorrente da aventura colonial: falta de notícias da esposa, vontade ou necessidade de se casar outra vez, pressão da família, gratidão, amor ou miséria.

Havia ainda outro documento necessário para o casamento: os “banhos”. Este deveria ser lido na missa que antecedia a cerimônia, fornecendo o nome dos pais e dos noivos. Se alguém tivesse alguma objeção ao casamento, poderia se pronunciar.

O preço dessa burocracia toda era tão elevado, que os próprios governadores reclamavam. Em São Paulo, chegou a ocorrer até briga entre o bispo e o governador. O primeiro, querendo cobrar uma fortuna pelas “provisões”. O segundo dizendo que, pelo preço – na época, 2,4 mil-réis –, ninguém conseguiria se casar, só os muito ricos! O pior é que as pessoas eram perseguidas quando não contraíam matrimônio na frente de um padre. Por isso, vários casais pobres pediam licença às autoridades para esmolar. O governador da capitania, na época, ficou horrorizado com essa situação, e chegou a pedir ao bispo que dispensasse os pobres dessa despesa por considerá-la humilhante. Porém, o bispo não lhe deu ouvidos. E continuou a cobrar…

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Pelas leis da Igreja, os rapazes podiam se casar aos catorze anos, e as meninas, aos doze. Mas essa não era a regra. A maior parte dos jovens casava-se aos 21 anos, enquanto as parceiras teriam por volta de vinte. Na elite ocorriam, também, casamentos de meninas com homens bem mais velhos. Às vezes, as esposas eram tão jovens, tendo recém-completado treze ou catorze anos, que o casal precisava esperar algum tempo para começar a ter relações sexuais.

Não foram poucas as mulheres que se entregaram aos noivos esperando, com esse gesto, casar-se mais rápido. Mas o tiro, às vezes, saía pela culatra: grávidas, elas eram abandonadas. Vingativas e furiosas, iam se queixar ao bispo. Vem dessa situação, aliás, a expressão: “Vá se queixar ao bispo!”. Havia punições rigorosas para os homens que engravidassem as moças à força. Eles eram obrigados a se casar ou a indenizar a “virgindade perdida”. Casos inversos também eram comuns: aproveitando-se de jovens ricos, moças pobres provocavam a gravidez para lhes arrancar uma boa soma de dinheiro que permitisse, mais tarde, casarem-se com quem quisessem.

– Mary del Priore

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Isabel e Conde D’Eu: casamento dos príncipes.

 

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