Biografias: reflexões sobre censura, liberdade e História

Debruçados sobre documentos exumados dos arquivos, historiadores sempre se sentiram seguros em apresentar o resultado de suas pesquisas. Sim, sabemos que elas revelam “uma verdade”. Não, “a verdade”! O trabalho incansável de ler e reler informações, decortiná-las e interpretá-las, base de nosso ofício, deveria ser suficiente para garantir a legitimidade do que escrevêssemos. Mas não era bem assim. Um adjetivo que permitisse dupla interpretação, um comentário subjetivo – como se fosse possível fazer história acima da subjetividade – um título que não saísse direto da “fofolândia” era o suficiente para bloquear a publicação de uma biografia. Se a família torcesse o nariz e ameaçasse com indenizações financeiras, quem torcia o nariz era o editor.

Vivi isso… Tive que reescrever um livro: “Matar para não morrer”, a história de Dilermando de Assis que, como o título indica, atirou em Euclides da Cunha para não ver assassinados a mulher que amava e o filho que tiveram juntos. Nada mais sofrido ou injusto para um autor. Afinal, historiadores que somos, sabemos que procuramos nos aproximar o mais possível da verdade. Pois, a “verdadeira verdade” não existe. Ela é “construída” até pelo próprio biografado.

Como bem disse Maria Bethânia, reagindo à notícia da liberação de biografias, ela “sabe quem é”. Entende que uma biografia é uma interpretação do que foi e é sua vida. Sabe que a biografia é uma construção a partir de dados e informações pesquisadas, obrigatoriamente, com o maior rigor. E com essa sabedoria da grande cantora, outros biografados deveriam aceitar a leitura que é feita de sua trajetória.

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No mundo anglo-saxão ou na França, biografias são milhares. Ponte importante para atrair leitores e entusiastas da história de um país, elas são os best-sellers que ninguém cansa de ler ou recomendar. Um mesmo personagem recebe centenas de interpretações. Janelas para o passado, e daí sua importância, as biografias permitem mergulhar numa vida e também num tempo. Em outro mundo.

Graças a uma jurisprudência arcaica e a movimentos pré-históricos de defesa da imagem de alguns artistas vivemos, em plena democracia, os piores momentos de censura. Gesto de repúdio a informações indiscretas? Não. Desejo de ganhar dinheiro em cima do suor de quem quer fazer ou contar uma história. Os que se envolveram com tal atitude deviam sofrer repúdio público. Vimos gente da “esquerda-caviar” encarnar o entulho autoritário que tanto criticavam. Afinal, sabedores do que fosse perder a liberdade, se comportaram como piores ditadores do que os dos Anos de Chumbo.

Conheci Paulo Sérgio Araújo num evento na pequena Teresópolis, onde moro. Jantamos juntos. Sua tristeza diante da censura do livro sobre Roberto Carlos era infinita. Foi a pesquisa de uma vida. Da vida de um jovem professor mal remunerado, esforçado, dedicado, apaixonado pelo “rei” e tratado literalmente como lixo. Agora, quando a voz de Roberto Carlos escapa do rádio, desligo rápido. Faço o mesmo com os tais artistas que apoiaram a repreensão das biografias. Não precisamos de quem invoca a censura para defender sua “imagem fofa” e contas bancárias sólidas.

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Ao contrário. Precisamos de lições de tolerância e liberdade. Nosso país tem resquícios de arcaísmo que devem ser combatidos todos os dias. Nós, historiadores, o dever de nos aproximarmos ao máximo da verdade, sem a pretensão religiosa de contá-la em sua integridade.

Bem-vinda a nova lei! Viva a liberdade. Parabéns aos membros do STJ e aos membros da Associação Nacional dos Editores de Livros. Bela vitória! Que as biografias venham de todos os lados, de todas as penas: jornalistas, ficcionistas, poetas, por que não? Enfim, quanto mais biografias melhor. Nós, historiadores, vamos aproveitar o fim da censura para fazer as melhores biografias, fazendo ao mesmo tempo, a melhor história possível.

Por Mary del Priore.

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Mary del Priore: devemos combater o arcaísmo.

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