A feiura é universal, onipresente. Ninguém ousou escrever sua história, nem aquela da solidão e da dor, suas consequências mais imediatas. Há séculos os feios servem de bode expiatório a sociedades muito seguras de suas verdades ou do discurso de suas elites, sempre dispostas a determinar o modelo ideal de beleza. Com a supremacia da imagem na vida do homem moderno, nossa época contínua a instaurar a tirania da perfeição física. Hoje, todos querem ser sadios, magros, jovens. Grassa uma verdadeira lipofobia. Todos parecem querer participar da sinfonia do corpo magnífico, quase atualizando as intolerantes teses estéticas dos nazistas.
Na outra ponta, criaturas como madre Teresa de Calcutá conheciam de perto os horrores do sofrimento físico. Numa entrevista, ela dizia que o trágico da “feiura” de um leproso era sua solidão, o fato de ser indesejável, não amado, rejeitado. Que se podia fazer tudo por um corpo em sofrimento, mas nada por esse “outro” sofrimento feito de negação. Anônimos, os que não são belos simplesmente recusam seus corpos. Tanto mais quando vivemos hoje a supremacia da aparência. A fotografia, o filme, a televisão e o espelho das academias dão ao homem moderno o conhecimento objetivo de sua própria imagem, mas também a forma subjetiva que ele deve ter aos olhos de seus semelhantes. Em uma sociedade de consumo a estética aparece como motor do bom desenvolvimento da existência. O hábito não faz o monge, mas quase…
A feiura vivida como um drama. Daí a multiplicação de fábricas de “beleza”, cujo pior fruto é a clínica de cirurgia plástica milagrosa. Os pagamentos “a perder de vista” com “pequenos juros de mercado” parecem garantir, graças a próteses, a constituição de um novo corpo: formal, mecânico, teatral. Corpo que é a efígie do desejo moderno, desejo derrisório de uma perpétua troca das peças que envelhecem—, de nádegas a coxas e panturrilhas.
Essa relação com o corpo implica opiniões contraditórias. Os adversários da cirurgia estética recusam-se em acordar ao corpo uma importância que valha a pena modificar o que conta é a alma ou o espírito. O desejo de modificação torna-se para alguns até mesmo suspeito. Os partidários, por sua vez, acreditam que a forma corporal é uma realidade cujo papel na vida cotidiana está longe de ser pequeno. A cirurgia aqui, é um elemento importante para o equilíbrio psicológico e seus desdobramentos: o casamento feliz”,” o sucesso profissional! As pessoas pouco percebem que a chave de um bom relacionamento com a vida passa por certa dose de inteligência, carinho e alegria. Pelo menos é o que afirmam os especialistas!
O tal equilíbrio passa, também, por uma constatação à qual é dada pouca atenção: o culto à beleza, e exclusivamente a ela, é perigoso. Estando intimamente ligado àquele da juventude e do efêmero, torna-se um desafio ao tempo, e mais dramático: ao homem ele mesmo. Pior é quando um modelo de beleza nosso, mestiço, passa a ser ameaçado pelo que vem de fora. Entre nós, aumenta assustadoramente o número de mulheres que opta pela imagem da Barbie americana, dona de volumosos seios de plástico falsos, cabeleiras louras e lábios de Pato Donald.
No outro extremo encontramos a androginia mais absoluta, na qual cada um quer ter as formas do outro, com todas as suas consequências. Inclusive aquela terrível de quando nossas preocupações físicas tomam a frente, significando o medo e a recusa dos que não são como nós. Mal se percebe que nossa sociedade não valoriza a identidade, mas a identificação. Os pequenos defeitos, que outrora davam charme a uma mulher, estão em baixa.
Ora, o Brasil é um país mestiço. Nossos corpos são o resultado de uma longa história biológica em que se misturam índios, negros, brancos de várias procedências e amarelos. O resultado foram ancas, cabelos crespos, a maneira ondulante de andar — que Gilberto Freyre chamava de “morenidade”. É preciso proteger e libertar nossa sociedade do que ela pode fazer com ela mesma. É preciso proteger nela sua integridade, sua identidade subjetiva e genealógica, a dignidade de suas formas e das suas cores originais contra o materialismo e o desmantelamento do corpo.
– Mary del Priore ( baseado em “Histórias do Cotidiano”).
A boneca Barbie como padrão de beleza.
Vivemos essa tirania da beleza da qual somos vítimas e que infelizmente também somos reprodutores desse discurso cruel, que faz com que odiemos nossos corpos! Vivemos frustados porque a publicidade está cheia de mulheres e homens perfeitos e nos impelem a correr atrás daquele ideal de beleza que nunca alcançaremos! Então deixamos de frequentar certos lugares, porque não temos os corpos nos padrões “certos” para estar neles! Acabamos por preferir ficarmos em casa, onde não estão presentes todos aqueles olhares que nos reprovam pelo fato de termos corpos “anormais”, tais olhares nos fazem sentir tamanha vergonha como se estivéssemos cometendo um grave delito!
Ótimo texto, como sempre Mary acrescentando conhecimentos à minha vida, penso que a futilidade estética tomou conta de nossa sociedade, e nossos valores estão submersos, num passado que nem mesmo nós sabemos se algum dia existiu.
Mary, você é uma historiadora perfeita. Parabéns pelo seu trabalho. #Sucesso’