A Anistia Internacional pretende discutir se seria conveniente recomendar a descriminalização da prostituição a governos e organizações internacionais. Por enquanto, trata-se apenas de um documento de trabalho interno intitulado Draft Policy on Sex Work (Proposta de Política Sobre o Trabalho Sexual), em que os vários responsáveis da organização apresentarão para votação em sua reunião anual. Mesmo assim, mais de 400 organizações de direitos humanos e defesa das mulheres se posicionaram contrariamente à proposta e fizeram um abaixo-assinado pedindo sua eliminação. O episódio virou uma grande polêmica porque várias atrizes de Hollywood – como Emily Blunt, Lisa Kudrow, Meryl Streep, Kate Winslet, Lena Dunham, Anne Hathaway e Emma Thompson – vieram a público repudiar a ideia.
Os críticos à medida argumentam que a descriminalização levaria à legalização de bordéis, cafetões e consumidores do sexo, os pilares da indústria sexual, que movimenta 99 bilhões de dólares globalmente. Os dois lados concordam que as mulheres envolvidas em prostituição não devem ser penalizadas. Tenho lido algumas opiniões que defendem a posição da Anistia Internacional, sendo que o principal argumento é de que as mulheres devem ser “donas de seus corpos”. Ou seja, se querem se prostituir é um direito delas. É uma posição bastante ingênua, em minha opinião (mesmo porque ninguém quer perseguir ou punir as prostitutas).
Todos sabemos que as profissionais do sexo são exploradas por cafetões e por quadrilhas internacionais. Dados do último relatório global das Nações Unidas sobre tráfico de pessoas, de 2014, apontam que o tráfico para fins de exploração sexual é a modalidade mais comum, atingindo 53% das vítimas, seguido de trabalho escravo, com 40%. A descriminalização da exploração do consumo de sexo por dinheiro deixará muitas mulheres em um estado de vulnerabilidade ainda maior, contribuindo para que elas se tornem mercadorias sexuais.
No Brasil, a cafetinagem começou a crescer no século XIX. Até então, a prostituição era realizada principalmente pelas mulheres escravas, mestiças e pobres. Muitos senhores e senhoras “respeitáveis” reforçavam sua renda obrigando suas escravas a se venderem. Nas fazendas, senhores e feitores podiam abusar das cativas livremente. No século XIX, aumentou o número de estrangeiras que chegavam para servirem como meretrizes. As açorianas, seguidas das francesas e polacas. As francesas eram consideradas “artigos de luxo” e estavam reservadas aos homens mais ricos e poderosos.
Segundo Mary del Priore, em 1845, em um estudo sobre “A Prostituição, em Particular na Cidade do Rio de Janeiro”, o médico Dr. Lassance Cunha afirmava que a capital do Império tinha três classes de meretrizes: as aristocráticas ou de sobrado, as de “sobradinho”ou de rótula e a da escória. “As primeiras instaladas em bonitas casas, forradas de reposteiros e cortinas, espelhos e o indefectível piano, símbolo burguês do negócio. Verdadeiras cortesãs (…) eram mantidas por ricos políticos e fazendeiros. (…) As cidades portuárias mais importantes tornaram-se abrigo para cáftens internacionais, fundadores de bordéis e cabarés”.
A exploração sexual começava a se profissionalizar, atraindo quadrilhas para o Brasil. A prostituta passava a ser um produto de exportação do tráfico internacional do sexo que abastecia os prostíbulos das capitais importantes. E a medicina, de certa forma, contribuía para a situação: “Ainda que se atendo a uma perspectiva higienista duvidosa, os médicos colocam-se contra a prostituição clandestina, exercida quase que exclusivamente por escravas dentro das casas, criando famílias paralelas, debaixo do mesmo teto”, completa a historiadora.
O preconceito contra as mulheres “públicas”, porém, continuava o mesmo: “Na tradição cristã que vinha desde os tempos da Colônia, a prostituta estava associada à sujeira, ao fedor, à doença, ao corpo putrefato. Este sistema de correlação estruturava a sua imagem; ele desenhava o destino da mulher votada à miséria e à morte precoce. Este retrato colaborava para estigmatizar como venal, tudo o que a sexualidade feminina tivesse de livre. Ou de orgíaco. (…) Ameaça para os homens e mau exemplo para as esposas, a prostituta agia por dinheiro. E por dinheiro, colocavam em perigo as grandes fortunas, a honra das famílias”, destaca Mary.
A sociedade sempre foi bastante cruel com as meretrizes, que eram vistas como um mal necessário por Santo Agostinho, que as considerava úteis para que os homens evitassem os pecados “mais graves”. Dizia: “São as prostitutas, numa cidade, a mesma coisa que uma cloaca num palácio: suprimi a cloaca de um palácio torna-se-á um lugar sujo e infecto”. Desprezadas e desejadas pelos homens, talvez até invejadas por outras mulheres pela sua suposta liberdade sexual, elas atualmente têm conseguido maior visibilidade, organizando-se e lutando pelos seus direitos.
Entretanto, a imagem da prostituta livre, rica, bem sucedida só aparece nas novelas e nos filmes de Hollywood. A realidade da maioria dessas profissionais é marcada pela exploração, violência, preconceito e vulnerabilidade. Por trás da prostituição, estão traficantes internacionais, gigolôs, cafetões e grandes interesses financeiros. Por isso, causa preocupação a proposta da Anistia Internacional. Aplausos para as atrizes de Hollywood por trazerem o tema para discussão na mídia.- Texto de Márcia Pinna Raspanti.
Hollywood e glamourização da prostituição (“Pretty Woman”, 1990).