A missão da família: colonizar e converter

Os europeus trouxeram para o Novo Mundo uma maneira particular de organizar a família. Esse modelo, constituído por pai e mãe “casados perante a Igreja”, correspondia aos ideais definidos pela Igreja católica no Concílio de Trento, que teve lugar na Itália em 1545. Esse Concílio realizou um trabalho muito importante: deu uma direção a todos os esforços que desaguaram na Reforma católica através da redação de um missal romano, da formação e insistência no celibato de padres, do culto à Virgem Maria e aos santos, da imposição de regras para a vida dos católicos. A família, segundo definiu o Concílio, deveria servir como instrumento na luta contra a Reforma protestante e a difusão do catolicismo no Novo Mundo. Apenas dentro deste tipo de família – a sacramentada pelo sagrado matrimônio – seria possível educar cristãmente os filhos, movimentando uma correia de transmissão pela qual passariam, de geração em geração, as normas e os valores da Igreja católica. As regras matrimoniais e familiares, deveriam servir para difundir o catolicismo, inclusive fortalecendo-o na luta contra o protestantismo e outras religiões dissidentes do catolicismo no século XVI. A Igreja católica procurava assim universalizar suas normas para o casamento e a família.

Mas será que o europeu conseguiu impor esse tipo de família ao Novo Mundo? Vejamos o que dizem alguns estudiosos. Para o sociólogo Gilberto Freyre, por exemplo, autor de um dos mais importantes livros sobre o Brasil Colonial, Casa Grande & Senzala, a família  rural, ou semi-rural foi o mais importante fator de colonização. Ela era  a unidade produtiva que abria espaços na mata, instalava fazendas, comprava escravos, bois e instrumentos. Agia de forma mais eficiente para o desbravamento e transformação da terra do que qualquer companhia de comércio. Já o historiador Sérgio Buarque de Holanda, outro conhecedor profundo do período colonial (seu livro mais importante é Raízes do Brasil) observou que a família prevalecia como centro de todas as organizações; os escravos, domésticos ou aqueles que trabalhavam nas plantações juntamente com os demais parentes e empregados dilatavam o círculo familiar no qual o senhor de engenho era o todo-poderoso chefe ou o respeitado  pater-familias.

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Para esses dois estudiosos, a família estava no centro do processo de colonização: segundo eles, a soma da tradição patriarcal portuguesa com a colonização agrária e escravista resultou no chamado patriarcalismo brasileiro. Tanto no interior quanto no litoral era a autoridade patriarcal que garantia a união entre parentes, a obediência dos escravos e a influência política de um grupo familiar sobre os demais. Uma grande família reunida em torno de um chefe, pai e senhor forte e temido impunha a sua lei e a sua ordem nos domínios que lhe pertenciam. Era a família patriarcal.

Instalada geralmente, em engenhos ou fazendas com capelas, onde celebravam-se batizados, casamentos e enterros, além de animadas festas de santos padroeiros, a família patriarcal concentrou-se na área rural até o século XVIII. Em suas propriedades cresciam as plantações de cana de açúcar, tabaco ou anil. O chefe da família cuidava dos negócios e tinha absoluta autoridade sobre a mulher, os filhos, os escravos, empregados e agregados. Sua influência era enorme e se estendia, muitas vezes, à famílias do mesmo tipo, localizadas em regiões próximas. A família patriarcal, caracterizada pela estabilidade  e pela manutenção de valores morais muito tradicionais, foi assim resumida pelo historiador Capistrano de Abreu: “pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados”.

O interessante da família patriarcal é que ela não se restringia a este trio. Pai, mãe e filhos constituíam apenas o núcleo central. A família incluía também os parentes, os filhos ilegítimos ou os de criação, os afilhados, empregados e amigos com quem se tinha uma relação de compadrio (isto é, padrinhos ou madrinhas), os agregados e escravos. Havia uma relação de dependência e solidariedade entre seus membros.

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Embora se reconheça a importância deste tipo de família, chamada de “patriarcal”, outros historiadores têm mostrado a existência, na mesma época, de outros tipos de família: famílias pequenas, famílias de solteiros e viúvos, famílias de mães e filhos vivendo sem pais ou companheiros, famílias de escravos. Ou seja, também no passado, a noção de família variou de acordo com os diferentes grupos sociais e de acordo com as diferentes regiões do país. Os escravos, forros e livres, vivia de um jeito, os poderosos da elite senhorial, viviam de outro. Igual mesmo só o hábito de integrarem, muitas vezes, amigos e parentes à família.

Para concluir, alguns esclarecimentos: no Brasil Colonial havia tanto a família patriarcal, localizada nas áreas de monocultura e latifúndio, quanto as famílias que se distinguiam por ligações transitórias e consensuais, nas áreas de passagem e mineração. Havia também a família constituída por homens livres e pobres, em zonas agrárias, cuja necessidade de estabilidade a fazia muito semelhante á família patriarcal. Viver numa família onde faltara a benção do padre e o casamento na igreja não queria absolutamente dizer viver na precariedade. As ligações, então chamadas de concubinárias, em que as pessoas viviam juntas sem estar casadas perante a Igreja, podiam ser e eram muito estáveis. Havia consenso entre os companheiros. O que era precário e instável era a situação material dessas famílias, a obrigação de muitos homens terem que abandonar suas mulheres para ganhar a vida em outras localidades. Mas a estima, o respeito e a solidariedade eram características que encontravam-se tanto num tipo de família, quanto no outro. Assim como as tensões ou violências, presentes, em ambas, também.

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– Mary del Priore

Descobrimento do Brasil

Os colonizadores trouxeram também um modelo de família.

 

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