Uma garota de 14 anos considerada “acima do peso” (e quem não está, pelos critérios atuais?) participou de um concurso de beleza no Rio Grande do Sul. A menina, que foi incentivada pelos pais, acabou despertando a simpatia da plateia e depois, dos internautas. Muita gente admirou a sua coragem em se exibir de biquíni, em meio a um grupo de concorrentes magras e altas. Realmente, os padrões de beleza que nos são passados pela mídia são irreais e injustos, portanto, é sempre bom desafiá-los. Agora, o que me incomoda mais nessa história toda é a própria existência do concurso, além do fato de que pais e mães permitem, e até estimulam, a participação de suas filhas adolescentes nesse tipo de evento.
Acho muito complicada essa história de determinar quem é bonito ou feio, afinal, a beleza tem uma inegável carga subjetiva. O conceito de belo é influenciado por inúmeros fatores, que mudam em diferentes momentos da História. Entre os séculos XVI e XVIII, por exemplo, a Europa abandonava os seios pequenos e quadris estreitos das mulheres retratadas por pintores como Dürer, para louvar as rosadas “gordinhas” de Rubens e Rembrandt. Gordura não era só sinônimo de beleza, mas, também, de distinção social. Hoje, a gordura se tornou uma espécie de doença que, inclusive, traz vergonha a seus portadores.
Voltando ao concurso de beleza, fico pensando no efeito que tais avaliações podem trazer à autoestima de crianças e adolescentes (e mesmo em mulheres adultas). Será confortável ser examinada em minúcias, ser comparada com outras concorrentes, ser aplaudida ou vaiada por uma plateia de desconhecidos? Ouvir piadinhas sobre sua forma física, mesmo que sejam supostamente elogiosas? Sair do concurso convencida que precisa perder peso ou mudar o cabelo ou aumentar os seios para ser a vencedora da próxima vez? E a mocinha “fora do padrão”? Questiono até que ponto é bom ser conhecida como a “gordinha do concurso”…
Outro ponto incômodo é a sexualização precoce de nossas crianças. Garotas de 14 anos deveriam expor seus corpos como mercadorias? É possível achar que é inocente um desfile de adolescentes em biquínis minúsculos? Os corpos femininos continuam a ser tratados como objeto de consumo, desde muito cedo. Mary del Priore lembra que a nossa sociedade está impregnada de comportamentos que sensualizam as meninas: as gestações de adolescentes, a supervalorização do corpo, o hedonismo crescente gerando “paquitas”, “funkeiras” e outras aberrações.
A história do Brasil traz exemplos chocantes de sexualização da infância. Gilberto Freyre, baseado em documentos do século XVIII, comprovou que era costume de jovens senhores de engenho estuprarem meninas escravas com a finalidade de transmitir-lhes sífilis e curarem-se. Outro acontecimento corriqueiro, pelo menos até fins do século XIX, era a união de meninas de oito, dez ou doze anos, com homens muito mais velhos, senhores de 50, 60 anos. Tais comportamentos não escandalizavam os brasileiros, afinal as mulheres serviam basicamente para procriar, então, quanto mais cedo casassem, melhor.
Atualmente, com a emancipação feminina, as garotas são estimuladas a estudar, ter uma carreira, ser independentes. Não está na hora de mostrarmos a elas que essa supervalorização do corpo apenas reforça velhos comportamentos machistas? Em tempos em que a pedofilia se tornou provavelmente o maior pesadelo de pais e mães, parece impensável que a mídia e as próprias famílias estimulem a erotização da infância. Entretanto, é a isso que assistimos todos os dias e tentamos nos convencer que “não tem nada demais” ou que “a maldade está nos olhos de quem vê”.
As meninas do passado eram vistas como instrumento de barganha nas negociações de família, sendo oferecidas em casamento a homens mais velhos. E as de hoje? Devemos colocá-las em vitrines como objetos de cobiça?
– Márcia Pinna Raspanti.
“A Banhista”, de Auguste Renoir; “Banho Turco”, de Jean-Auguste Dominique Ingres.
Marcia voce citou neste artigo sobre casamento de meninas. Você poderia me indicar alguma leitura, pois pretendo estudar este assunto para o mestrado.
Em meu TCC estudei Maria Lucia Mott e as parteiras, que acabou me levando aos estudos da Mary, e me aguçou a vontade de estudar sobre as relações matrimoniais ou não de meninas.
estou amando o blog …e obrigado.
Oi, Vanessa. Você vai encontrar no blog outros posts sobre sexualização precoce das meninas. Sobre o costume muito difundido, até mesmo no século XIX, de realizar casamentos entre garotas pré-adolescentes e homens mais velhos, usei como fonte o livro de Mary del Priore, “História do Amor no Brasil”.
Fico feliz que você esteja gostando do nosso trabalho!