“Travessa e brincalhona”, dela diria um viajante inglês em Lisboa aos finais do século XVIII. A descrição se refere a Carlota Joaquina, neta de Carlos III e filha dos Príncipes das Astúrias. Predestinada a viver entre dois países, Espanha e Portugal, entre dois mundos, a Europa e a América, esta camaleoa, verdadeiro animal político, deu os seus primeiros passos caminhando por entre as transformações que se operavam na corte dos Bourbon. Nascida em 1775, ela cresceu junto ao avô de quem era a neta mais velha e preferida. Apesar da proteção, não pode deixar de sofrer as consequências de um mundo dividido, ele também, entre mudança e estagnação, ruptura e permanência.
Aos 59 anos, Carlos III vivia exclusivamente para a família e a caça, atividade nobre de grande importância para as famílias reais ibéricas, devotando-se a um cotidiano caseiro e regrado. Não apreciava festas e era com aborrecimento que se vestia para qualquer recepção. Dele se dizia ter transformado a Corte de Espanha, numa das mais tediosas da Europa. Austeridade na conduta moral e na etiqueta era o selo, a marca desta casa real. Mas as mudanças batiam às portas. Por baixo do tapete dos grandes palácios por onde a família deambulava, Pardo, Madrid, Aranjuez, Escurial, e retiros de caça como a Casita del Labrador, infiltravam-se modismos importados da França. Um exemplo: os petimetres e petimetras, cortesãos encarregados da etiqueta e ridicularizados por suas maneiras afeminadas ou pelo excesso de coqueteria, importados diretamente de Versailles. Os estrangeirismos, trazidos pela vinda de estrangeiros ao país ou pelas viagens realizadas pelos nobres espanhóis, eram mal vistos. Eram considerados portadores de indecências, de liberdades e, – por que não – de “pecados”. Maria Luiza de Parma, mãe de Carlota Joaquina, nascida e criada numa corte italiana, frívola e de hábitos sociais mais abertos, representava em todo o esplendor, a cortesã estrangeirada responsável pela introdução de tais hábitos, nas casas sisudas espanholas. Tornou-se, assim, uma das mais impopulares rainhas da história de Espanha. Seu caso amoroso com “o jovem e belo Godoy”, o amante, a quem arrastava nos cortejos públicos, sendo ela “velha e feia”, feria a suscetibilidades de uma aristocracia conservadora e rígida. Sobre o debate conservadorismo versus estrangeirismos, começavam a se pavimentar questões políticas. A aristocracia representava cada vez mais, o decadentismo e a licenciosidade – em folhetos e panfletos, Maria Luíza será comparada à Maria Antonieta. E o povo espanhol, sem mancha de influência externa, representava o liberalismo inspirado da Revolução Francesa, o fim dos privilégios e a instauração de uma nova ordem política.
A menina feia, um pouco “atolondrada”, nas palavras de um diplomata espanhol – Floridablanca – cresceu neste ambiente marcado por tendências contrárias. Educada pelo padre Felipe Chio de São Miguel, debruçou-se obrigatoriamente sobre as Sagradas Escrituras, a gramática, rudimentos de História e Geografia, além das regras elementares da etiqueta de corte nas artes da equitação, baile e canto. Enfim, a agenda das meninas bem nascidas. Em tudo mostrava “esperteza e aplicação”, segundo documentos de época. Aos nove anos, durante quatro dias seguidos, passou rude prova. Foi examinada diante de seus pares e membros da corte madrilena, arguida sob os mais diversos assuntos. A finalidade de tal exibição? Expor a prometida ao infante português, D. João. Não faltaram observadores como ministro luso Aires de Melo que se apressou a escrever à Lisboa: “Ontem, 14 de julho de 1784, se concluíram os exames dando sua Alteza tão boa conta de si na instrução latina como na língua francesa, concluindo tudo com dança inglesa e vários minuetos”. Sua descrição física? “Alta, muito bem feita de corpo, suas feições são perfeitas, dentes muito brancos e como há pouco tempo teve bexigas, ainda não se desvaneceram de todo as covas delas, é branca, corada, muito viva, atinada e tem havido muito cuidado na sua educação”. Já o ministro francês, marques de Bombelles, tinha opinião bem mais ácida. Dizia que a nação portuguesa jamais perdoaria ao marquês de Louriçal (responsável pelos arranjos matrimoniais) de ter dado ao infante João de Bragança uma mulher da qual “il parait impossible qu’il lui tire jamais race” – de quem parece impossível tirar qualquer descendência. Diz-se – prossegue o mordaz Bombelles – que é preciso fé, esperança e caridade para consumar este ridículo casamento. Fé para crer que a infanta é uma mulher, esperança para se vangloriar de ter tido filhos dela e caridade para se resolver a fazê-los”.
Tinha Carlota Joaquina dez anos, quando do pedido oficial de sua mão. Melhor dizendo, quando o contrato de casamento é firmado, reatando os laços entre as coroas ibéricas, malgrado as resistências inglesas que não queriam o fortalecimento diplomático da região. Em março de 1785 a jovem infanta chega à Vila-Viçosa. Levava no séquito seu preceptor, padre Felipe e uma criada particular, D. Ana Miquelina responsável pelo conjunto mais interessante de informações sobre sua adolescência em Portugal, notavelmente analisado por Sara M. Pereira. Além de vestir, pentear , zelar pela alimentação e as criadas mais diretas, D. Ana era encarregada por Maria Luiza de dar notícias semanais sobre sua filha. D. Ana Miquelina reuniu um acervo considerável de dados sobre a vida cotidiana de Carlota Joaquina e de suas relações com os membros de sua nova família.
Desde logo, D. Ana Miquelina há de registrar “los mui malos modos” de Carlota Joaquina. Desde não querer fazer nada do que lhe dizem, o “demorar infindos a vestir-se”, o levantar sempre tarde, as birras por causa da roupa que lhe apertava ou os calçados que não queria calçar, o horrível comportamento à mesa, onde a Infanta pegava alimentos com as mãos, jogava-os à cara do Infante ou sobre as criadas, ou os silêncios obstinados – silêncios de 3 ou 4 horas – nas aulas do padre Felipe. Só D. Maria, sua sogra, era capaz de obter do demônio em forma de gente, alguma reação de obediência. O castigo dado pela rainha e capaz de dobrar “su mala educácion”? Proibi-la de andar de burro, coisa da que mais gostava.
Curiosa relação! D. Maria adorava a menina-nora. Desde que a conheceu, encantou-se por sua “viveza”. Por sua terrível e natural “viveza’que a impedia de concentrar-se na etiqueta ou nos estudos. Para a sogra, tal viveza era sinônimo de graça e alegria. “Ela é engraçadíssima – escrevia ao pai, Carlos III – e faz tudo como se tivesse outra idade…A nossa amada Carlota me agrada muito por suas boas qualidades”…E a sogra não a largava. Fazia dela a sua principal companhia. Iam juntas visitar conventos, iam às vindimas em Caxias, aos banhos de Caldas da Rainha, para a pesca em São Martinho do Porto. Semanas inteiras a menina era arrastada para esta agenda, sobrando-lhe nenhum tempo para estudar ou brincar. Já o sogro, D. Pedro, gostava de sua companhia nos serões: jogavam naipes juntos. Ou ele assistia, encantado, as suas exibições de bailado. Suas habilidades nesta atividade a transformavam no alvo das atenções.‘Bailava como uma pintura”gabava-se a sogra que a fazia exibir-se aos convidados. Os sogros cobriam-na de beijos e abraços. Suas proezas eram recompensadas com presentes. A tolerância às traquinices decorriam do fato de que Carlota era uma criança em meio a idosos. Até D. João agia como um irmão mais velho, ralhando quando ela se portava mal diante dele. Convivendo com adultos, não surpreende que Carlota, tenha, desde muito cedo, aprendido tudo o que precisava para mover-se no meio cortesão: as maneiras “manhosas”, como as descrevia William Beckford, necessárias, contudo, para driblar as intrigas palacianas. Formava-se neste caldo, segundo sua biógrafa Sara Marques Pereira, uma personalidade que somava o gosto pela rebeldia, a paixão pelo exotismo e a inteligência autodidata. – Mary del Priore
Retrato de Carlota Joaquina, por Nicolas-Antoine Taunay.