No princípio era o verbo entreter…

No mundo disperso, precário e rural em que viviam nossos antepassados, visitas eram sempre esperadas ao longo do dia. As dos mascates, então, aguardadas ansiosamente. Com seus armarinhos às costas, repletos de produtos comprados às embarcações atracadas no porto do Rio de Janeiro, eles batiam em todas as portas. Organizados em pequenas tropas para se proteger de perigos, seguiam em burros cargueiros, esmagados sob o peso da mercadoria. No avarandado da casa desenrolavam tecidos diversos, exibiam fitas e rendas ou artigos de perfumaria, como sabonetes de violeta, encantando sinhás e sinhazinhas com notícias da Corte. Quando no interior ou nos arredores da cidade, levavam novas de outras fazendas. Além de mascates, recebiam-se, também, as visitas de moradores da vizinhança. As mulheres, com vestido novo e xale de ramagens dos grandes dias, sentavam-se pelo chão em esteiras e conversavam sobre remédios caseiros, conselhos matrimoniais ou receitas. Algumas trocavam presentes: galinhas gordas, rendas, um mimo de ovos.

No vale do Paraíba, durante estação da colheita, gente das fazendas próximas também vinha aos engenhos ajudar a catar as frutas em tabuleiros. Acompanhadas de mucamas que levavam em cestas o farnel do almoço, começava a colheita cedo. As moças e crianças colhiam as mais baixas e os rapazes as mais altas. Quando o calor começava a ficar insuportável, estendiam-se esteiras no chão e os convivas se sentavam à volta da mesa improvisada. Danças depois das refeições permitiam alguma familiaridade entre rapazes e moças, que viviam trancadas a sete chaves.

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No campo ou na cidade, durante a faina diária, não faltavam interrupções ou momentos em que lazer e gestos repetitivos se misturavam: nas fontes ou rios, onde se reuniam as lavadeiras, “enterravam-se vivos e desenterravam-se mortos”. Nos mercados da cidade ou nas atividades agrícolas que juntavam homens e mulheres noticiavam-se, esmerilhavam-se e comentavam-se os acontecimentos locais, notadamente, os escandalosos ou ridículos. Entre homens, “praticar a boa conversação”  – expressão que aparece recorrentemente nas denúncias ao Santo Ofício da Inquisição – durante ou depois do trabalho, ou, entre mulheres, enquanto coziam, lavravam ou faziam trancinha em suas almofadas de bordar, era forma comum de entretenimento. Mexericar era, sim, uma forma de distração.

Estudando a vida doméstica na América portuguesa, Leila Mezan Algranti  lembrou o papel dos jardins como um espaço de sociabilidade e intimidade, portanto, de lazer. Varandas que se abriam para o quintal monopolizavam o burburinho das atividades, e este último se transformava em espaço de confinamento e fiscalização de mulheres da elite, cujos momentos de lazer ao ar livre eram, às vezes, controlados por seus familiares. O viajante Saint-Hilaire, em 1822, acrescentou: “os jardins sempre situados por trás das casas, são para as mulheres uma fraca compensação de seu cativeiro, e como as cozinhas, interditadas aos estrangeiros”.

A mesma autora destacou a presença de baralhos e tabuleiros de xadrez e gamão nos inventários e testamentos entre os séculos XVI e XVIII, expressão da vontade de reunir e se divertir com familiares ou amigos: “banquinha com jogo de damas e cartas de madeira de cores embutida”, informava um desses. Os jogos estavam na moda: o bilhar desde o século XVI. Os dados – que tiveram início com gregos e romanos – a partir de então, se disseminaram. Os baralhos, com vivas pinturas, se tornaram uma febre e produzidos na Europa eram exportados para as Américas.

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O baralho ou baralha, sinônimo de confusão e tumulto, foi introduzido no Ocidente pelos sarracenos, no século XIV. À volta das mesas – poucas – ou no chão, sobre esteiras, comum também era o jogo das pedrinhas, o “Bato” vinda de Portugal, mas de origem grega. Usando seixos ou ossos, jogados sucessivamente ao ar até serem todos reunidos num montinho, era o passatempo de adultos e crianças. A Finca ou jogo do pião, que consistia em aproximar o brinquedo de uma “casquinha” de louça ou madeira, pousada no solo, atraia os mesmos aficionados.

Ao final de um dia de trabalho e depois de rezar as Aves Marias que soavam, ao longe, nos sinos das pequenas cidades, mulheres reuniam-se para pentear os cabelos e catar piolhos às crianças e adultos. Ou para “fiar ao serão”, velha tradição portuguesa que se valia do trabalho doméstico feminino em torno das rocas, criando momentos de distração. Às vezes, ajuntavam-se vizinhas e comadres para fiar juntas; cada qual, fornecendo um pouco de azeite para a candeia.  À volta do fogo de lenha, caçarola na trempe, a família se reunia, conversando e rindo. – Mary del Priore

fazendrugendas

“Família de fazendeiros”, de Rugendas (1825)

 

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