Ontem escrevi um artigo no blog sobre estupro, motivada pelas declarações do deputado Jair Bolsonaro. O objetivo do texto foi chamar a atenção para o número alarmante de crimes sexuais que têm sido registrados no Brasil. Repito o índice assustador: mais de 50 mil ocorrências no ano passado. Em nenhum momento, me ative às posições políticas do deputado ou da sua colega envolvida no episódio. A questão da violência sexual contra a mulher é mais profunda do que rixas político-partidárias.
Diversas pessoas comentaram o post – aqui, no Facebook ou no Twitter – e a maioria se mostrou indignada e preocupada com o crescimento dos casos de estupro no país. Também procurei acompanhar outras opiniões e artigos que foram vinculados sobre o episódio. Várias observações, contudo, revelam o quanto o machismo está arraigado em nossa cultura. E pior: como alguns brasileiros ainda acham que o estupro é um crime “menor”, um momento de “fraqueza” do homem, muitas vezes provocado pela própria mulher. Tem gente que ainda consegue fazer piada com o assunto…
Estupro é crime em qualquer circunstância. É um crime terrível, devastador, que causa vergonha e acaba com a autoestima da vítima. Não tem nada a ver com aparência ou com comportamento. É uma violência gratuita e monstruosa. O deputado ganhou espaço na mídia com suas declarações ofensivas, sendo, inclusive, defendido por muita gente, até mesmo por mulheres. A discussão sobre o tema, contudo, continua superficial e permeada pelo preconceito.
Acho que já passou da hora de tratarmos da violência sexual contra a mulher com a seriedade que ela merece. É preciso combater as ideias e tradições que incentivam a inferiorização do sexo feminino. As mulheres devem se mobilizar, independente de suas posições ou simpatias políticas, para combater esse mal. E sensibilizar os homens em relação ao problema, mostrando que uma “inocente” brincadeira ou ironia é ofensiva, nos incomoda e serve para minimizar a seriedade deste tipo de crime.
Para a historiadora Mary del Priore, as mulheres devem liderar esta movimentação. “Precisamos de uma mobilização que agrupe grupos de mães, feministas, profissionais organizadas em sindicatos, vereadoras e deputadas, professoras e estudantes, religiosas, enfim, de mulheres de todos os segmentos para dizer, diariamente, não à violência; e para pressionar, sem tréguas e por todos os meios, as autoridades. Mulheres dispostas a lembrar-lhes, incansavelmente, que qualquer forma de constrangimento físico viola um valor sagrado de nossa sociedade: a integridade do indivíduo”, destaca.
Outro ponto que me chamou a atenção é como as mulheres são julgadas pela aparência. Comentários como “gostosa desse jeito, não me admira que tenha sido atacada”. Ou pior: “tão feia que ninguém iria querer estuprá-la” são comuns. Nessa perspectiva, ser violada é quase um elogio, uma prova de que a vítima é atraente. Esse tipo de pensamento é tão absurdo e aviltante, que é quase inacreditável que persista.
A mulher sempre foi vista como objeto do desejo na maioria das culturas e, em pleno século XXI, ainda não conseguimos nos desvencilhar dessa amarra. Claro que queremos ser atraentes, mas não podemos mais ser tratadas como objeto ou mercadoria. Historicamente, a beleza e a sensualidade femininas sempre foram valorizadas e, ao mesmo tempo, temidas:
“Sexo belo ou sexo frágil, tais denominações vinculam-se às imagens que nossa sociedade fez deles, de sua beleza ou de sua saúde. No passado, o corpo da mulher era visto com as marcas da exclusão e da inferioridade. Cristalizada pelas formas de pensar de uma sociedade masculina, a evocação das imagens do corpo e da identidade feminina, na pluma de diferentes autores, refletia apenas subordinação: ele era menor, os ossos pequenos, as carnes moles e esponjosas, e o caráter, débil. A subordinação expressava-se, ainda, na capacidade de reproduzir, quando solicitada pelos homens. Contudo, na outra ponta dessa submissão, a mulher era senhora de beleza e sensualidade – aliás, beleza considerada perigosa, pois capaz de perverter os homens; sensualidade mortal, pois se comparava a vagina a um poço sem fundo, no qual o sexo oposto naufragava. As noções de feminilidade e corporeidade sempre estiveram, portanto, muito ligadas em nossa cultura”, diz Mary del Priore.
Lutamos contra séculos de inferiorização e dominação. Não é uma batalha fácil, mas não podemos mais nos acovardar e esperar que as coisas melhorem por si. Como se vê, a fala tão comentada do deputado traz muito mais implicações do que ele mesmo suspeita…
– Márcia Pinna Raspanti.
“Vênus adormecida”, de Giorgione (1508).
Longe de machismo, discordar da deputada não torna uma pessoa favorável ao crime, muito pelo contrário, condeno sim a atitute da parlamentar que provocou seu colega e depois se fez de vítima. Uma atitude covarde e oportunista. Deplorável!
Não se trata de discordar da deputada, nem se trata de política ou de simpatia por um ou outro partido. No blog não abordamos questões político-partidárias. O texto se refere ao discurso – que não é exclusivo do deputado envolvido na polêmica, como deixamos claro – de separar as mulheres entre as que “merecem” ou não sofrer violência sexual. Este tipo de pensamento – proferido por quem quer que seja – somente reforça a desvalorização da mulher. Nenhum ser humano merece sofrer um estupro, em nenhuma circunstância. A briga entre os parlamentares fica em segundo plano, na nossa abordagem, devido à gravidade do assunto. Recomendo que você releia o texto, focando no contexto de violência que vivenciamos atualmente. Discutir quem provocou quem, em meio às terríveis estatísticas relativas ao estupro (50 mil casos em 2013), me parece de menor importância.
Aff, a questão não é concordar com a deputada…. A questão é como o deputado utilizou seu discurso para discordar . Isso é agressivo! Inadimissivel aceitar que alguém se dirija a uma deputada dessa forma, nessa casa! Como me admira, após ler o texto, o comentário de Celina. Quero ver se falassem isso para ela publicamente! O que ela iria dizer?
Ele utilizou o estupro como ferramenta argumentativa. Independente do que ele pensa (se alguém merece ou não ser estuprada/o, me parece que ele acha que ha quem mereça e quem não mereça), é extremamente ofensivo que ele utilize o estuprar ou não como mero juízo de valor do “estuprador”, banalizando essa forma de violência grotesca.