Vamos falar sobre gênero?

Recentemente, no Brasil (com bastante atraso em relação a diversos países), começou-se a falar da importância de abordar a questão de gênero nas escolas. Imediatamente, veio a reação. Grupos conservadores entendem que isso significa ensinar depravação às crianças ou fazer apologia à homossexualidade. “Menino é menino; menina é menina – não há meio termo” – dizem alguns. Pais e mães, assustados, se revoltaram contra a tal “ideologia de gênero”. Mas, será que esse pânico se justifica? A meu ver, nem um pouco. O curioso é que falar sobre gênero nada tem a ver com orientação ou preferência sexual, como muita gente acredita. Como disse Simone Beauvoir, “ninguém nasce mulher” – ou homem, complemento eu. Parece óbvio, que não estamos falando de aspectos biológicos, mas culturais. E muitos, maliciosamente, “confundem” os dois aspectos.

Quem estuda a História sabe que os papéis sociais mudam em diferentes épocas e lugares. Vejamos o que nos conta Mary del Priore, em “História do Amor no Brasil”, a respeito da educação de meninos e meninas, em Portugal e no Brasil, dos séculos XVII e XVIII:

 “Educadores, leigos ou religiosos passam o tempo a inculcar a ideia de que o mundo é um lugar de tentações. Os meninos devem ser afastados ‘dos prazeres corporais’. A ‘familiaridade entre os dois sexos’ constituía a mais importante questão na educação das crianças. Os meninos não deviam participar nas brincadeiras ou nas conversas onde estivessem meninas. Assim, para os separar mais facilmente davam-se nas Regras para a educação cristã dos meninos, obra publicada, em 1783, exemplos extraídos das Sagradas Escrituras: ‘Não olheis para a mulher inconstante nos seus desejos, para que não caiais nas suas redes’; ‘Não fixeis os vossos olhos numa donzela para que a sua beleza não seja motivo de sua perda’. São muitos os exemplos.

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 Já os conselhos destinados às meninas, começam por sublinhar a condição inferior do seu sexo, por estar a mulher diretamente ligada ao pecado. Nessa ordem de ideias, lembra-se a inconveniência de uma infância desregrada na futura mulher. Os trabalhos domésticos, afastando-a das tentações amorosas, era o que convinha ao seu sexo. As companhias eram escolhidas pela mãe, que não devia deixá-la ler romances ou poesias, mas, apenas, salmos e hinos de igreja, de preferência em francês. A dança não era aconselhável porque era ‘um laço do demônio’. E a música e os concertos tinham igualmente maus efeitos para as jovens – as árias profanas ‘excitam as paixões, servem de isca à sensualidade’. O desprezo da beleza, simplicidade no vestir, deitar e acordar em horas certas eram regras básicas. Além do papel que a economia doméstica devia desempenhar na sua educação, os pais escolhiam o confessor e o próprio homem com quem tinham que casar”.

        O texto mostra como os comportamentos mudam: coisas que eram impensáveis no passado se tornam corriqueiras – e vice-versa. O mesmo ocorre entre culturas diferentes. Hoje, a situação é bem diversa. As meninas têm direito à educação e estudam lado a lado com os meninos. A convivência entre os gêneros, entretanto, ainda gera conflitos que, muitas vezes, têm consequências graves. Nos últimos tempos, a imprensa tem trazido notícias estarrecedoras sobre abusos e até estupros nas universidades e escolas. O bullying se torna cada vez mais agressivo. A internet e as redes sociais são usadas para humilhar e difamar. Falta empatia. Como melhorar essa relação? Nesse contexto, surge a necessidade de abordar a questão de gênero. O respeito ao próximo, independente de seu sexo, idade, posição social ou orientação sexual, deve ser estimulado nas escolas e em casa.

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Muitos desses conflitos têm origem na suposta “inferioridade feminina” que vimos nos compêndios educacionais do passado. Os garotos (ainda) são estimulados a ter um comportamento mais agressivo, a gostar de esportes, a rejeitar as coisas de “mulherzinha”. Isso leva a uma desqualificação do feminino. Por incrível que pareça, ainda existem famílias em que as tarefas domésticas são realizadas exclusivamente pelas mulheres. Meninos com um comportamento diferenciado sofrem com as brincadeiras e questionamentos sobre sua sexualidade desde muito cedo. Muitas vezes, até em casa. Garotas que se atrevem a fazer atividades mais “masculinas” também enfrentam preconceito e, às vezes, a violência.

Cabe a nós, educadores e familiares, ajudar meninos e meninas a se enxergarem de forma mais igualitária. Fingir que o conflito não existe ou dizer que “sempre foi assim” só irá trazer mais sofrimento aos jovens. Não se trata de negar as diferenças biológicas ou de influenciar a orientação sexual das crianças, mas de ensinar respeito e boa convivência. Quem pode ser contra isso? – Texto de Márcia Pinna Raspanti.

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Campanha contra a “ideologia de gênero”.

2 Comentários

  1. celina

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