A palavra gênio designa, desde o século XVII, uma atitude superior do espírito que eleva o homem acima da média e que o torna capaz de criações, invenções e iniciativas que parecem extraordinárias. Nunca é demais lembrar tais significados quando falamos em Gilberto Freyre. Prova de sua excepcionalidade é a tese defendida em 1922, na faculdade de Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais de Columbia, em Nova York, traduzida e republicada entre nós.
Gilberto Freyre era, então, um garoto. Aos dezoito anos, seguiu para os Estados Unidos, fixando-se em Waco, Texas. Ali estudou, colaborando, também, para o Diário de Pernambuco com uma série de artigos intitulados “Da outra América”. Divulgava, então, suas primeiras caricaturas, além de devorar os autores que iriam incentivar-lhe a escrita: Stevenson, Austin, Browning, Montesquieu. Como estudante de sociologia, aprendeu a sair em campo, para realizar pesquisas sobre a vida das comunidades negras e dos marginais mexicanos em terras texanas. Ao estudar com Franklin Giddings, um dos adeptos da “New History”, tendência metodológica que privilegiava a psicologia, a antropologia, a biologia, a economia e a geografia, aprendeu a sensibilizar-se. Não com os grandes feitos da história, mas com as relações entre o homem e seu ambiente. A aventura nos Estados Unidos o obrigou, também, a olhar o Outro: o americano. E a experiência, o vivido, o confronto com outros homens e hábitos funcionavam como uma verdadeira iniciação, mudando a consciência do mundo que o cercava.
Com o diplomata e historiador Oliveira Lima, amigo que o adotou como a um filho, repetia um aforismo cujo sentido vai orientar sua vida e sua reflexão: cada homem é um mundo. É preciso estudá-lo e descobri-lo. Na América, ele descobre outra América: a portuguesa, seus homens e suas culturas misturadas, imbricadas e sobrepostas. O objetivo do estudo que ora iniciava, seria decifrá-las.
Elíptica, fechada em si mesma, a vida americana amarrada a padrões burgueses e pouco criativos o incitava a pensar o Brasil: o apego à língua, a inserção no mundo ibérico, a valorização da mestiçagem. Sua identificação com a as coisas da terra era total: as mulheres, os sobrados, os engenhos, as assombrações, a comida dos tabuleiros, as ruas, a influência negra ou mourisca. Tal como aprendera com Franz Boas, a singularidade brasileira deveria ser a resultante do estudo de estruturas materiais somadas ao estudo de valores e crenças através das quais os homens modelariam seus comportamentos, construindo uma síntese original, um destino próprio. Na tese, Freyre tentou sintetizar algumas dessas questões, sem se deixar influenciar pelo evolucionismo ou o comparatismo, então, em voga.
Essa tarefa exigiu dele a disposição ímpar de “reintegrar-se completamente” ao país, e por meio de documentos de época, atolar-se “na sua carne e no seu massapé”. Foi esse o verdadeiro significado de estudar o Brasil: compreender e interpretar seu chão, sua gente, seus corpos e almas. Nadando contra a corrente, o jovem Freyre já se indignava com os que, sem jamais ter deixado a terra brasileira, teimavam em adotar modelos estrangeiros, dando continuidade ao europocentrismo tão vivo entre os da nossa elite. Não era esse o modelo que queria para si, mas um outro. Outro que lhe permitisse ressuscitar “o passado brasileiro mais íntimo [..] até esse passado tornar-se carne. Vida. Superação de tempo”.
Pois foi esse jovem genial que, na flor da idade, escreveu “Vida Social no Brasil no século XIX”. Verdadeiro embrião de estudos seminais, o livro revela abordagens e temas pioneiramente tratados: a interdisciplinaridade, a história oral – com depoimentos de sobreviventes – e a questão do sexo na formação da sociedade brasileira. Sem contar outra inovação, tão mais tarde usada por historiadores: o uso de anúncios de jornais e de relatos de viajantes de passagem pelo Brasil. Os primeiros para comprovar a mestiçagem da população através de informações sobre escravos fugidos ou a venda de cativos. Os segundos para tratar da benignidade do sistema escravista e patriarcal, tema que mais tarde irá relativizar. Outro ponto que esboça, na tese é o da influência da religião no cotidiano, elemento central e atuante na vida social do século XIX, bem como a presença de estrangeiros e estrangeirismos, tão responsáveis pela edificação de falsas Europas nos trópicos. O passado íntimo dos brasileiros ele estudou ao debruçar-se sobre os hábitos culinários, a higiene, a saúde, os avanços tecnológicos, num exaustivo e penetrante cardápio de assuntos que só recentemente a historiografia ousou abordar.
Janela escancarada para nosso passado, mas, também, para a historiografia, esse livro tem o dom de apontar a genialidade precoce de Gilberto Freyre. Um gênio clássico e moderno ao mesmo tempo. Clássico, pois suas obras se obstinam a sobreviver nas bibliotecas, bibliografias acadêmicas e livros escolares. E moderno, pois ele oferece, sempre e de forma ilimitada, garantias para a inovação, a renovação e a interrogação.
-Texto de Mary Del Priore.
Imagem: acervo do Instituto Moreira Salles.