Por Maria De Simone Ferreira.
No ano de 1851, aporta no Rio de Janeiro o jovem grumete alemão Carl von Koseritz, acompanhado de 1900 soldados e 52 oficiais da Legião Alemã contratada pelo Império do Brasil para lutar na fronteira contra Oribe e Rosas. Von Koseritz é logo encaminhado para o Rio Grande do Sul na condição de mercenário, porém, ao chegar à província sulista, o alemão abandona a Legião e estabelece-se em Pelotas, onde atuará como forte liderança política dos interesses dos colonos alemães junto à província e ao governo imperial.
Trinta e dois anos após seu primeiro contato com a Corte imperial brasileira, von Koseritz decide empreender uma nova viagem ao Rio de Janeiro, a qual deixará registrada em um diário de viagem, publicado, concomitantemente, ao longo de sua jornada na Gazeta de Porto Alegre, em português, e no Deutsche Zeitung (Jornal Alemão), em alemão, sob os títulos de Cartas da Corte e Em viagem. Em 1941, as cartas foram compiladas no livro Imagens do Brasil.
Naquele ano de 1883, von Koseritz encontrava-se com 53 anos, já havia atuado no sul como educador, jornalista, etnólogo, colecionador e, quando de sua vinda à capital do Império, exercia a função de deputado provincial, interessando-lhe objetivamente com a viagem defender os interesses políticos da província sul rio-grandense no tocante à imigração de colonos alemães para o Brasil. Imagens do Brasil é uma obra dedicada primordialmente às descrições do viajante sobre a cidade do Rio e sobre a vida na Corte, não obstante, seu principal desejo parece ter sido poder observar e registrar impressões da cidade, vivenciar o cotidiano da boa sociedade e civilizar-se nas instituições imperiais, segundo suas palavras em 26 de abril de 1883:
“É certo que sentimos aqui pulsar a vida do Império – aqui nos encontramos no ponto central e mais importante dele e vê-se diariamente na rua do Ouvidor os homens que governam o país e conduzem a opinião pública. (…) O Rio de Janeiro é o Brasil, e a rua do Ouvidor é o Rio de Janeiro, – eis uma sentença cheia de verdade.”
O fato é que o autor queria vivenciar a Corte, e suas cartas-crônicas da viagem cumprem uma função pedagógica alinhada ao discurso oficial de construção de uma identidade para a Nação brasileira, para seus leitores e para si mesmo – como colono, como europeu, como político, etc. -, assim como de formação de imagens para um Império chamado Brasil.
Saltam-me aos olhos em seu diário os registros atentos às questões culturais do Império, sintetizadas no Rio especialmente nos museus, nas coleções e nas exposições que visitou em sua viagem, cujas análises eu exploro e aprofundo no livro Museus imperiais: uma viagem às Imagens do Brasil na narrativa de Carl von Koseritz, lançado em 2012 pela Editora Cassará.
Do diário de viagem de um personagem tão polivalente do Brasil oitocentista, delineiam-se relatos argutos sobre os museus de então, que nos deixam entrever o papel central que essas verdadeiras cidadelas letradas desempenhavam no âmbito da política centralizadora do Estado imperial. Esse exercício de voltar-se para o passado em busca de um entendimento de como nossos antepassados lidavam com o seu tempo e com a sua sociedade parece-me fundamental para a conscientização acerca de nosso momento atual, de tantas lutas inglórias e de pouca seriedade em relação às políticas de cultura no país.
A von Koseritz parece-lhe inconcebível voltar ao Rio Grande do Sul sem visitar os museus da Corte e, assim, deixar de se ilustrar. Destacam-se de suas entradas no diário as várias visitas dedicadas ao Museu Imperial e Nacional – até 1889 esta instituição funcionou em um prédio, hoje inexistente, no Campo de Santana, atualmente é o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista – e à Exposição Pedagógica realizada no antigo prédio da Imprensa Nacional, uma vez que seu olhar e seu interesse são técnicos, dignos de um viajante da tradição iluminista; se não lhe interessavam as coleções europeias do Museu Imperial e Nacional, as coleções arqueológicas, em contrapartida, atraíam sua atenção, já que ele próprio era colecionador de artefatos arqueológicos, além de ter sido, também, organizador da Exposição Brasileira Alemã, realizada em 1882 em Porto Alegre.
O Museu Imperial e Nacional merece maior atenção do viajante, afinal, este era o museu modelar do Império, onde se praticavam o estudo e o ensino das ciências naturais com suas coleções, dentro da lógica iluminista de museu que orientou a criação da instituição em 1818 e sua atuação ao longo do século XIX, buscando inseri-la tanto no projeto de construção de uma identidade e de uma história nacionais em conformidade com os ideais de progresso, luzes e civilização propagados pela Europa, como fazer uso de suas práticas etnográficas para escrever a história do passado da Nação por meio de suas coleções arqueológicas, que demonstrariam o estágio de civilização do Brasil.
A Exposição Pedagógica é analisada pelo viajante do ponto de vista de seus organizadores e de seus visitantes. Essa exposição contou com a participação de diversas nações que ali exibiram aparatos e instrumentos destinados ao mundo da educação (globos, mapas, mobiliário escolar, livros, estrutura e orçamento dos ministérios implicados na instrução pública). Von Koseritz compara as representações de outras nações com a desleixada representação alemã na exposição, na qual “tudo está amontoado e arranjado tão sem gosto quanto é possível, embora haja coisas realmente interessantes”. De acordo com o viajante, esse descaso certamente contribuiu para a pouca atenção já comumente destinada pelos brasileiros a tudo que provinha da Alemanha.
Quanto ao público frequentador da Exposição, von Koseritz parece concluir que a Política de Instrução Pública, cuja meta era formar os cidadãos brasileiros de maneira a garantir a continuidade do projeto de construção do Estado imperial no futuro por meio de uma elite orientada pelos ideais de civilização e de manutenção da ordem e da unidade do Império, não viria a se consolidar, haja vista o desinteresse dos visitantes pela mostra:
“Se a exposição pedagógica, que teve realmente um brilhante sucesso, terá resultados práticos é uma outra questão, cuja solução ainda está aberta. Para as escolas do governo e os respectivos professores não haverá seguramente nenhuma utilidade. Estes senhores e senhoras se apresentam ali com seus alunos e alunas que atravessam a sala em fila dupla e a passo de ganso, de olhos baixos e sem parada, sem nada observar. Os professores também não veem nada; eles acompanham seus alunos no passeio e as coisas expostas não lhes provocam o menor interesse.
Rio de Janeiro, 25 de agosto de 1883.”
A viagem e os relatos de von Koseritz possibilitam verificar a importância das letras e do papel da escrita naquela sociedade, a importância dos vínculos do Brasil com os padrões externos, em especial os europeus; a importância da sociedade e do projeto político em jogo para a invenção do Estado imperial. O Museu Imperial e Nacional e a Exposição Pedagógica evidenciam esse esboço pretendido de um retrato do Império metonimizado em suas instituições civilizadoras. Essas elucubrações incitam minha curiosidade e a vontade de indagar ao leitor: no contexto do Brasil do século XXI, para que servem mesmo os museus e suas exposições?
Maria De Simone Ferreira, é doutoranda em História Social da Cultura (PUC-Rio) e museóloga do Museu Histórico Nacional/IBRAM/Minc.
Carl von Koseritz.
Es raro encontrar a blogers con conocimientos sobre este tema , pero creo que sabes de lo que estás comentando. Gracias compartir un articulo como este.
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Koseritz também passou São Paulo em 1883, e visitou a chapelaria de João Adolfo Schritzmeyer, que tinha a fábrica no Vale do Anhangabaú, na altura de onde está a estação desse nome do metrô. O ribeirão passava por dentro
da fábrica, cuja água era aproveitada para produção do vapor nela empregado.
A atual Rua João Adolfo situa-se no que foi o interior da chácara em que a fábrica se localizava, nas proximidades do Largo da Memória. Dizia que era uma das maiores fábricas do País, onde trabalhavam 132 pessoas com máquinas modernas. Koseritz foi recebido por um genro de João Adolfo, um pernambucano que falava alemão e morava com a família na própria fábrica.
Impressionante a observação de Koseritz sobre a visita de professores e alunos aos museus. Poderia ter sido escrita na semana passada. É assim que vi os visitantes agirem em todos os museus que visitei.
No contexto do Brasil do século XXI, os museus servem para nada – infelizmente. História – cultura em geral, aliás – não atrai o interesse da grande massa que, conectada no mundo virtual, nada quer aprender; nada quer melhorar.
Excelente artigo. Fiquei com vontade de adquirir o livro nele citado.
Infelizmente nossos mestres só visitam museus para sairem da sala de aula e ad crianças mal orientadas só o fazem para sair da escola e assim estamos formando pessoas ignorantes e alheias ao seu passado. Lamento quando um aluno não sabe quem foi ou representou Luzia. Enfim estamos tentando omissos nunca.