O “gay power” e a vitimização do “macho”

No final dos anos 60, os papéis femininos e masculinos começavam a ser discutidos. Um exemplo  de como estes temas eram tratados é a revista Ele&Ela, nascida em 1969, num contexto cultural conturbado, quando discussões sobre o uso de LSD, a revolução sexual, e o feminismo davam o tom do debate público. A revista surgiu exatamente como alternativa moderna para o leitor interessado nas questões novas. É interessante notar que a identidade masculina começava, também, a ser problematizada. A revista não deixava de lado, na sua discussão sobre a mudança dos costumes, o impacto que tais transformações causavam no homem. Uma delas dizia respeito à “efeminação do homem moderno”, no artigo “Até que ponto o homem é feminino?”:

No início, somente os rapazes duvidosos davam à boa apresentação o cuidado que era próprio das mulheres. Hoje, a maioria dos homens demora mais diante do espelho e submete-se a tratamentos quase femininos”.

Tais questões, entretanto, não se radicalizaram até surgir, no discurso da revista, o movimento gay, ou Gay Power – ao que a revista se referia como o “poder alegre”. Ao buscar dar visibilidade e legitimidade para o “amor entre pessoas do mesmo sexo”, – como dizia a revista -, o “poder alegre” causou um impacto na hegemonia da masculinidade tradicional. Mas ao contrário do feminismo, – tratado quase como uma curiosidade – a homossexualidade e qualquer expressão sua, nunca teve aceitação sendo invariavelmente tachada de “desvio” e de “doença”.

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Embora a revista se visse forçada, dentro da sua proposta de dar conta da questão, informando sobre as quantas andava o gay power nos EUA e na Europa, a tradição conservadora falava mais alto. E da mesma forma como tratou de forma ambígua o feminismo, a revista abordava termos como “gay”, de forma distanciada. Numa tradução literal, preferia chamar os gays de “alegres”. Ao abordar os temas do movimento gay, o preconceito era tão forte, que a maneira mais simpática e neutra com a qual a revista se referia à questão era: “a mais discutida e possivelmente a mais disseminada forma de desvio do comportamento sexual humano”.

No artigo “As tristezas do Poder Alegre” a linguagem utilizada é propositadamente irônica em diversos trechos, quase ridicularizando as pretensões do movimento: “De uns tempos para cá, e aproveitando as reivindicações do grupos minoritários da sociedade, surgiu um movimento que a si próprio se intitulou de “poder alegre”. Na verdade, não se trata de um poder, nem chega a ser alegre. O movimento procura legalizar o homossexualismo, conferindo-lhe um status de absoluta normalidade humana. Aqui, analisamos a dura realidade dos fatos”.

A ironia com a qual a revista tratava a questão aparecia também numa seção de cartas, na qual um leitor de São Paulo escrevia:

“[pai]- Meu filho anda muito preocupado com as suas amizades. Tem rapaz assim em volta dele – e isso o impede de namorar as moças de sua idade. Reconheço que ele é muito bonito, mas não creio que seja anormal.

[Ele Ela] – O caso é delicado, seu João de Deus. Por mais amizades masculinas que seu filho tenha, sempre haveria tempinho para dar umas voltas com moças, desde que ele quisesse mesmo. O fato de o senhor achar seu filho muito bonito é bastante inquietador. Se o senhor acha isso, imagina os outros que não são pai dele! Da próxima vez que tiver filhos, faça-os bem feios, pois assim o senhor ficará sem este peso na consciência”.

A revista que deveria ser inovadora, aberta aos ventos da contemporaneidade só lia a homossexualidade na chave da aberração e se aceitava discursos a favor destas práticas, o fazia, inevitavelmente, com humor irônico. O comportamento gay parecia-lhe ser algo por demais ridículo, para ser levado a sério. Já em 1971, viam-se os primeiros sinais de repulsa ao feminismo e de revolta contra as “minorias”. O discurso tradicional transformara o homem em vítima e buscava salvá-lo da destruição, como afirma o artigo “Homem, com orgulho”:

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“De uns dez anos para cá, ser macho é sinônimo de grosso, cafona e superado. As minorias se somam e formam um todo quando o assunto é derrubar o homem-homem. Contra estes preconceitos é preciso que alguma coisa seja feita. E já – antes que as minorias o destruam e ele passe a ser um marginal da história e da vida”.

Os gays, continuavam sob os fogos do preconceito. Mesmo ao som de Ney Matogrosso e seu “Vira, vira, vira homem/ Vira, vira? Vira, vira, lobisomem”, eles e elas continuavam presos aos velhos esquemas. Mundo mudando? Lá fora. Cá entre nós, para a grande maioria de mulheres e homossexuais, só mudava no papel…- Mary del Priore.

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Ney Matogrosso: mudanças na imagem masculina.

4 Comentários

  1. Ernesto A. GULENGUE
  2. Jeferson Ramos

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