Uma moda historiográfica vem da França. Já vieram outras, mas, dessa eu gostei. Ela convida o historiador a contar a própria história para que seu leitor entenda “de onde ele fala”. Isso tem a ver com “transparência”, palavra que vem se impondo como sinônimo de ética e deontologia. Tal prática, também, exige que o historiador comprove que aquilo que ele prega em palavras e obras, seja coerente com o que ele vive. Bizarro enrolar a língua para martelar conceitos e autores complicados, quando a preocupação deveria ser a de democratizar a comunicação e a informação.
Digo isso, pois neste volume vamos falar dos anos 1960 até 2000, décadas em que o Brasil atravessou crises políticas. Elas não eram novidade, como sabemos. Desde as “inconfidências”, no século XVIII às revoltas regenciais, no século XIX às quarteladas da primeira metade do XX, as crises deixaram ouvir a voz do “povo” e das elites, serviram a interesses vários e de vários grupos e terminaram em poucas transformações para o desenvolvimento do país. Mas, na segunda metade do século XX, viram-se décadas de grande modificação na política, nos costumes, nas mídias, na cultura e na sociedade. Nem todos os brasileiros foram beneficiados, mas o país mudou. Eu já era nascida e, fui, portanto, testemunha de tantas mudanças, quando não fui levada por elas. Por isso acho importante adaptar-me à moda e dizer ao leitor “de onde falo”.
Por muitos anos, viver sob um governo militar não mudou absolutamente minha rotina: colégio, aulas particulares de desenho, piano e violão. Já adulta, fui ser “dona de casa”. Com os filhos na escola, resolvi “fazer faculdade”. Era preciso se ocupar. O mundo parecia estar mudando. Mais e mais mulheres saíam de casa cedo e voltavam à noite, depois de um dia no escritório. Corria o ano de 1983. Foi no cursinho pré-vestibular, em São Paulo, que, pela primeira vez, tive contato, com “assuntos políticos”. Um pequeno, muito pequeno grupo de alunos, falava em eleições, em “militares”, em ditadura e democracia. Gostei do que ouvi. Mandei confeccionar uma faixa e coloquei no portão da casa: “Diretas Já”. Veio o comício do Anhangabaú, que assisti do escritório do marido que dava para o vale. E as eleições. Ah, finalmente, eu vivia numa democracia. Será? Para mim, nada mudou e política não era assunto. Tampouco o era para as pessoas que me cercavam. Até então, era “do lar” e não trabalhava. Foi, apenas, quando fiz concurso para uma vaga de professor na Universidade de São Paulo, durante as provas de currículo prestadas internamente, que entendi que, para muitos colegas, houve golpe. Não Revolução. Muitos deles exibiam marcas de tortura física ou psicológica. Só ali, compreendi que o Brasil era complexo. Que nele, o tempo passou de forma diferente para uns e outros. Que Revolução e Golpe coexistiram na cabeça de diferentes pessoas, dependendo de onde se estivesse, de que lado se encontrasse o observador ou o ator da História. E mais, que a política não foi, para muitos brasileiros, a questão mais importante, entre os anos 1960 e 2.000.
Mais uma vez, novidade? Não. Ao percorrer os memorialistas dos anos 30 e 40 – no volume III desta tetralogia – percebi que o impacto das mudanças tecnológicas ou dos comportamentos no início do século XX despertava mais atenção do que o começo ou o fim do Getulismo ou a Revolução de 1932, em São Paulo. Ora, o mesmo vale para a segunda metade do século XX: só não temos essa percepção porque a maioria das informações, livros, teses, filmes e documentários sobre o período revelam, preferencialmente, uma face da história: a dos que viveram o Golpe e a Ditadura.
Um dos maiores especialistas da história do período, Daniel Araão Reis sublinha que os raciocínios simplificados que separam quem estava do lado da resistência dos que estavam do lado da repressão não se sustenta. Do livro bem-humorado de Fernando Gabeira, O que é que há, companheiro, à descrição das atrocidades repertoriadas no Brasil: nunca mais, inúmeras publicações alimentaram o debate, fazendo crer que houve resistência da sociedade. “Por diferentes meios e caminhos, inúmeras vezes em silêncio, articulando os mais diversos setores as pessoas teriam lutado contra a ditadura. Mas a história oficial ocultou cuidadosamente as relações complexas entre o regime e a sociedade”, explica Aarão Reis. Embora os militares tenham sido protagonistas da ditadura, ela não foi obra exclusivamente sua. É um equívoco histórico, – ele insiste -, torná-los bodes expiatórios e dizer que eles foram únicos responsáveis pelos anos de chumbo.
Poder-se-ia falar, sim, em relações complexas, delicadas, matizadas, algumas delas variando na forma e no conteúdo, caso o cidadão estivesse em público ou no privado. Aarão Reis sublinha ainda que “Tendeu a predominar a versão de que a sociedade brasileira apenas suportara a ditadura, como alguém que tolera condições ruins que se tornaram de algum modo inevitáveis”. Mas, inúmeras pesquisas sobre o muro de silêncio ou a zona de sombra que pairavam sobre milhares de civis que sustentaram o golpe, começam a ser reveladas. “Impossível – diz Aarão Reis – não ver as multidões que apoiaram o golpe ou contragolpe que se instaurou em nome da democracia e contra a corrupção que a vassoura de Jânio Quadros não conseguiu limpar”. Ou, não ver que as “esquerdas revolucionárias não eram, de modo algum, apaixonadas pela democracia, francamente desprezada em seus textos”. Tinham, pelo contrário, um projeto de assalto ao poder político, embora hoje, numa “reconstrução histórica” se queiram como parte da resistência democrática! Enquanto isso, resta estudar e compreender o silêncio das massas de trabalhadores urbanos e rurais.
Carlos Fico é outro renomado historiador que estudou perfeitamente o período. Ele define a época da Ditadura como um “tempo de censura, prisão, tortura e assassinato político. Tempo de iniciação política através do movimento estudantil, da atuação clandestina na esquerda, da opção extremada pelas armas ou por formas mais brandas de oposição como a adesão a um abaixo-assinado ou a ida a um show de música de protesto. Há também aqueles que passaram pela época em relativa apatia pelo crédito fácil do período do “milagre econômico”, ora vitimados pela propaganda política do “Prá frente, Brasil”, estupidificante a ponto de levá-los, ainda hoje, a buscar “o lado bom” da ditadura”.
Mas, entre uns e outros, quanta gente diferente! Nesse volume, ao falar de política, vamos colocar o dedo na ferida e….. apertar. Quantos milhões não integraram nem um, nem outro dos extremos da vida política? Não queremos uma concorrência de memórias – quem foi bom ou ruim – nem processar vítimas e carrascos. Apenas, responder essa questão: onde estava a sociedade? E para fazê-lo, daremos voz ao olhar de outras testemunhas da história política, além de guerrilheiros e militares, já bem retratados na historiografia atual. Ouviremos testemunhos em lugar de ler a imprensa, os discursos oficiais, os papéis administrativos ou “documentos secretos”. Testemunhos da maioria silenciosa que também faz parte da “gente brasileira”. Ela também estava lá, mas com outra percepção, com outra visão de mundo. O anticomunismo ou mesma as condições de vida modelaram a sua vivência nessas décadas. Eles foram a conexão entre a sociedade e a política autoritária das Forças Armadas. Vale à pena ouvir a história de personagens invisíveis da que hoje é chamada de “Ditadura Civil e Militar”, definição que reconhece o papel da burguesia e da classe média no golpe de 1964. Historiadores que somos, sabemos que os indivíduos são plurais dentro deles mesmos. Trazem dentro de si a gama completa de comportamentos possíveis. São como partituras musicais cujas melodias podem ser acentuadas ou suprimidas. Minha família, entre outras, representa a conexão que busca Aarão Reis. Conexão que apoiava a mudança imposta pelos militares. Eles, – acreditava-se – e apenas eles, garantiriam a paz e a serenidade necessária ao crescimento do país, afastando qualquer risco de “cubanização”.
Vi, mais do que vivi, muito do que aconteceu. Mas o que acontecia, longe da serenidade de tantos lares brasileiros?
- Texto extraído de “Histórias da Gente Brasileira – Vol. 4”, de Mary del Priore (editora LeYa). Lançamento previsto para maio.
Eu fui concebido durante o efervescente ano de 1968, e nasci dez meses após a decretação do famigerado AI-5, em 07/09/1969. Durante a década de 1970, morando no Recife até os onze anos de idade, não podia ter noção de política e do que se passava no país. Obviamente, nesse período nunca ouvi falar de ditadura militar, luta armada, torturas etc, e não me recordo que algum dia alguém da família tivesse falando qualquer coisa a esse respeito. A Rede Globo, espécie de canal oficial do regime militar, em razão da censura imposta aos meios de comunicação e de sua relação umbilical com o regime, não divulgava nada que fosse contrário ao governo dos generais. Isso não era pouca coisa, porque naquela época a Vênus Platinada já era disparada, o canal de televisão mais assistido pela população. Qual criança da minha geração não assistiu nos anos 1970, na Globo, o Sítio do Pica Pau Amarelo (1977), o Globinho com Paula Saldanha (1972), Os Trapalhões (1977), desenhos como Formiga Atômica, Zé Buscapé entre outros. Os adultos davam audiência para as novelas, o Jornal Nacional (1969) e o Fantástico (1973). Logicamente, que pelos meios de comunicação a massa da população não tomava conhecimento do que ocorria nos porões da ditadura. Com relação a política, a única coisa que me lembro nessa época foi uma visita que o general-presidente-ditador Figueiredo fez ao Recife entre 1979-80. Movimentos importantes do período, como o contra a carestia, as greves do ABC, a Anistia e outros, não chegavam aos nosso ouvidos. Só vim me inteirar de movimentos sociais e políticos a partir de 1983, já morando em Campinas, com as Diretas Já, com nomes como Sócrates, Chico Buarque, Lula, Lucélia Santos, Osmar Santos e vários outros nos palanques dos comícios. Movimento que a Globo tentou esconder da população, mas desta feita não foi possível, a ditadura estava agonizando.
Professora,
Há uma certa dúvida que venho buscando uma resposta plausível.
Inegavelmente, o regime militar brasileiro abusou da autoridade, torturou e matou, bem como havia no pais corrupção, miserabilidade e pobreza.
Só que quando perguntamos aos mais velhos sobre a ditatura militar é quase uníssono o tom saudosista e a resposta de que vida das pessoas de classe média baixa ou classe média era melhor.
A qualidade da educação, escolarização, saúde e segurança pública são sempre ressaltados como elevados.
Ainda hoje, as Forças Armadas gozam de bastante credibilidade da sociedade civil dentre pessoas que viveram aquele regime e os mais novos, nascidos no período da redemocratização.
Ou seja, o recorte histórico dado pelos historiadores, jornalistas e artistas mostra-se proporcionalmente invertido aos relatos fornecidos pelos anônimos.
O texto da senhora, de alguma forma, vem clarear esse ponto de vista. Muito bacana a iniciativa.
Aguardo novos artigos.
Admiro o seu trabalho. Parabéns!
Beijos!
Olá. Por favor, mande seu depoimento para o email [email protected] . Obrigada!
A impressão geral que tenho daquela época (1960-1970) é de que, como povo e sociedade, éramos muito mais pobres, contudo éramos bem mais nobres; havia menos educação (no sentido formal, de educação escolar), mas havia muito mais respeito. As condições de vida eram bem modestas. O desjejum era café com pão (e manteiga, quando tinha); para o almoço, arroz, feijão, um pedaço de carne ou de ovo e farinha; no jantar, geralmente, café com pão. A fome, ao longo do dia, aplacava-se com um punhado de farinha ou com frutas coletadas pelas cercanias. No tocante à segurança, nossa preocupação era com “ladrões de galinha” e com os “trombadinhas” (ou “mão-leve”) nos ônibus lotados ou na cidade movimentada. Minha mãe, algumas vezes, teve que dividir um lápis e uma borracha ao meio para que eu e minha irmã pudéssemos estudar. Um caderno simples (daqueles que trazia na contra-capa o mapa e o Hino Nacional) era repartido para atender a duas disciplinas. Fiz cálculos e treinei caligrafia em papel de embrulho para poupar o caderno. Às vezes, escrevia com pouca pressão no lápis para, mais tarde, poder apagar o que havia escrito e reaproveitar o caderno. Não lembro de ver moradores de rua e crianças envolvidas na criminalidade. A partir dos 6 anos de idade passei a ir sozinho à escola, caminhando cerca de 1 km por ruas pouco movimentadas e trilhas desertas sem jamais ter sido incomodado. Nossos vizinhos e conhecidos, na quase totalidade, não tinham nem o ensino primário (assinavam o nome, mal sabiam ler e faziam as operações aritméticas). A preocupação era com o dia-a-dia e com o futuro dos filhos (pagar as contas, sustentar a família, manter os filhos na escola). Não discutiam política (comentava-se política eventualmente), mas distinguiam claramente o certo do errado, exigiam dos mais jovens respeito e bons modos e nos davam bons exemplos de trabalho, dedicação e seriedade. Os meninos jogavam futebol na rua, descalços, com bola de borracha ou reproduziam as cenas dos filmes de “bang-bang” ou de “soldados na guerra”, com revólveres e fuzis artesanais, improvisados com pedaços de madeira. À noite, brincávamos de “pique-esconde”. Ganhar brinquedo da marca “Estrela” era um luxo: só no Natal e para quem alcançasse excelente desempenho escolar. No meu modesto modo de ver e de viver, nos subúrbios afastados de Fortaleza, a década de 1960 foi muito feliz.
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