Homofobia e violência: bichas, bonecas, bofes, travestis e tríbades

          Como descrevi em História do amor no Brasil, entre as décadas de 30 e 60 do século passado, multiplicaram-se as opções de vida noturna para os homossexuais, com bares e pontos de encontros exclusivos. Casas apropriadas para encontros já existiam na capital, Bahia, Pernambuco, São Paulo e Porto Alegre.  Os chamados invertidos se exibiam em dancings, cabarés e cinemas. Travestis glamorosos encantavam a imprensa e o público nos bailes de carnaval. Apesar de poder circular livremente e de desenvolveram uma rede de sociabilidades bastante animada, a “fechação” ou qualquer manifestação de afeto era reprimida em público. Sobravam os pequenos apartamentos onde se recebiam amigos, namorados ou casos.

            No cenário urbano se encontrava todo o tipo de parceiro. A preferência pelo bofe ou “homem verdadeiro” que não assumia a identidade homossexual era marcante. “Gosto ainda da Praia do Flamengo. Mais bofe, mais homem do que em Copacabana, mais humilde, mais gostoso” – já dizia um homossexual a um pesquisador, nos anos 50. Para muitos, o alvo era o tal “homem verdadeiro”, “quente” e o desafio consistia em tentar seduzi-los, com drinks ou dinheiro. Invertendo o papel tradicional de passivos, os homossexuais iam à luta para conquistar sua presa, investindo todo o seu potencial sedutor.

           Houve quem se prostituísse e contasse depois, em memórias, como o fez Carlos Machado. Eram os anos 30, e muitos gaúchos tinham vindo para a capital na esteira da revolução. Para sobreviver, Machado arrumava encontros de turistas com garotas. Ou outros…

          “Um dos problemas que nos afligia era o da indumentária. Não só pelas condições climáticas, como também por certa dose de vergonha acrescida, posso confessar, pelo receio das constantes brigas que aconteciam com os boêmios cariocas, reforçados pelos atléticos remadores do Botafogo, Flamengo, Boqueirão e os do lcaraí, que atravessavam a baía da Guanabara em busca de qualquer tipo de diversão.

          Estávamos precisando de roupas elegantes, mas onde arranjá-las se o nosso dinheiro não estava dando nem para comer? O nosso Capitão Galeguinho, elemento bastante observador, descobriu que estava hospedado no nosso hotel um bailarino português de nome Francis, que se apresentava no Teatro Recreio com uma importante- companhia de revistas. O tal de Francis era um efeminado, dono de um sensacional guarda-roupa. O plano do nosso capitão era simples e eficiente. Haveria um sorteio e o infeliz ganhador teria de conquistar o português, passá-lo nas armas e requisitar seus ternos, camisas, sapatos, gravatas etc. Fui o sorteado e, como ordens são ordens, cumpri rigorosamente o plano traçado No dia seguinte estávamos todos elegantemente trajados, desfilando pelas ruas da Capital Federal. Foi a única experiência homossexual de minha vida e certamente minha mais ativa participação na Revolução de 30”.

            A distinção feita pela medicina entre pederasta “ativo” e “passivo”, sendo o primeiro identificado com o “macho” é que permitiu a Carlos Machado a experiência sem culpa. Na tradição patriarcal da sociedade, ele seguia homem para valer!

           Na década de 30, explica Paulo Sérgio do Carmo, havia uma íntima troca de informações entre polícia e médicos. Em São Paulo, os “invertidos” pobres eram encaminhados ao laboratório de Antropologia Criminal do Instituto de Identificações, onde médicos desenvolviam estudos sobre as causas da homossexualidade. Surgiam os primeiros estudos, assinados por sexólogos e peritos médico-legais, que se posicionavam contra a posição severa da Igreja católica. Era preciso mais tolerância em relação aos portadores de “desvios sexuais”.  Em 1935, o famoso médico Leonídio Ribeiro endossava: a homossexualidade estava além do controle individual.  Haveria “disfunção do sistema endócrino” capaz de impelir a esse comportamento desviante. Esses pobres “enfermos”, destituídos de responsabilidade sobre seus atos, só poderiam ser salvos graças à medicina. Mereciam compaixão! Por outro lado, como demonstrou o historiador Kenneth P. Serbin, a hierarquia eclesiástica tentava esconder ao máximo as aventuras sexuais de seus sacerdotes, transferindo-os de paróquia em paróquia.

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          Os rígidos códigos morais da época acentuaram, entre casais e pelo menos até os anos 1960, a dupla ativo e passivo ou bofe & boneca. As bonecas estavam em busca de bofes, ou rapazes como parceiros e companheiros, sabendo que a maioria de seus “maridos” acabaria por deixá-los em troca de casamentos e filho. Os bofes não se consideravam homossexuais, e as bonecas estavam interessadas em “homens verdadeiros”:

           “Em algumas relações de bichas e bofes, o casal se juntava só nos fins de semana, ou se reunia à noite na casa de um amigo ou num hotel para ter relações sexuais. A maioria não morava junto. A bicha era a dona da casa. O bofe fazia coisas de homens, consertos. A bicha não fazia porque não sabia ou porque deixava ele fazer. A bicha cozinhava, arrumava a casa. Alguns bofes não eram tão bofes, assim e ficaram junto com bichas durante muitos anos. Outros bofes se casaram e mantiveram relações sexuais eventualmente porque eram casados. Gostavam ou da pessoa ou da relação homossexual. Eu acho que eles tinham uma tendência homossexual, só, mas devido à sociedade tinham medo de se declarar”, relembra Agildo Guimarães, editor do jornal O Snob.

           Dentro deste mundo de bonecas e bofes a ideia de dois bichas praticando sexo era tão repugnante para as bonecas quanto era repugnante para a população heterossexual, os casais homossexuais. Era incompreensível para as bonecas que dois homens quisessem se amar. “Bicha era bicha. Bofe era bofe. Bicha não podia ser bofe e bofe não podia ser bicha. Mas conhecemos um casal, onde os dois eram bofes. Era um escândalo, um absurdo. A bicha sempre tinha que ficar passiva”, explicava Guimarães sem, aparentemente, se dar conta que a rigidez dos papéis vigorava, também, no mundo dos amantes heterossexuais.

          Se os amores homoeróticos proliferavam e encontravam espaços para sua realização, as páginas de jornal se enchiam com escândalos. O caso de Febrônio Índio do Brasil correu o país. Condenado como “louco moral” foi acusado do estupro e morte de menor, vivendo, segundo a imprensa, “no vício da pederastia”. Uma aberração: “No caso desse monstro, lamentamos não haver a pena de morte”, dizia a manchete. Os “escandalosos” casos de João Francisco dos Santos, vulgo Madame Satã no Rio de Janeiro, ou de José Augusto do Amaral, o Preto Amaral, em São Paulo, jogaram luz sobre  indivíduos que  médicos julgavam “atentar violentamente contra as normas sociais”. Suas fichas criminais repletas de acusações de furto, porte de arma, agressões, ofensas públicas ao pudor coloriam o passado dos condenados. O encarceramento foi a solução não só para os considerados criminosos, mas, também, para várias famílias que não admitiam a homossexualidade de seus membros. O Sanatório Pinel, em São Paulo, recebeu nos anos 30, diversos desses “pacientes”.

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          Crescia a grande publicidade. E junto com ela, a homofobia. Ouçamos a reação de Graciliano Ramos, na Casa de Correção no Pavilhão dos Primários, cujas palavras revelam a percepção da época: leve tentativa de compreensão, porém odiando o homoerotismo:

           “Walter Pompeu cortou-me o almoço e o jantar. Sentava-se à minha direita, na primeira mesa. E percebendo o horror que me inspira o homossexualismo, iniciou um jogo desonesto no refeitório. O horror se acentuava naquele meio; a relatividade moral se impunha, era absurdo pretender que indivíduos sujeitos anos e anos ao regime carcerário procedessem como pessoas livres. Mas isso ficava em explicação, e afastava-me dos corpos imundos com excessivo nojo. Esforçava-me por vencer a repugnância. Poderia dizer onde estava. Certo dia, barbeando-me na saleta, vi no espelho o mulato Pernambuco, faxina, em namoro com um rapazola penteado e lânguido. Pernambuco acendia os olhos, cofiava os bigodes, um sorriso largo a espalhar-se em toda a cara; o outro, encostado à janela, cruzava as mãos no peito, inclinava a cabeça, afetando maneiras pudicas e virginais. O safadinho percebeu que estava sendo observado e entrou a fazer sinais ao amigo, apontando-me. Nessa altura Moreira entrou, viu a manobra e desatinou:- Cachorro, sem vergonha. O casal escapuliu-se, desceu a escada.

[…].

            – Ora essa! Intervim. Para que esses excessos? Não há motivo.

            – É um sem vergonha, insistiu o guarda.

            Tentei defender o rapaz.

            – Não é só ele. Qual a proporção de pederastas aqui?

            – Não sei. Uns noventa por cento, mais ou menos.

            – Então? Quase tudo.

            – Mas esse é um porco.

            – Tudo é porcaria.

            – Não senhor. A porcaria desse é pior que as outras.

            A severidade me surpreendeu, Moreira admitia o principal e recusava a minúcia. Afinal o procedimento daqueles indivíduos explicava-se pela necessidade, mas seria preciso imaginar que também os atos do garoto, julgados porcos, sem nenhuma explicação, deviam constituir uma necessidade para ele. Comentei isso com vários companheiros, esforçando-me por desculpar os infelizes sem poder ocultar uma profunda aversão”.

          E sobre os presos na Ilha Grande:

          “Tipo esquisito era o sujeito que nos lavava a roupa. Fornido, branco, de gestos ondulantes, olhares equívocos, desagradáveis, sujos. Tinham lhe dado a alcunha de Maria Gorda. Certo dia, o acharam vestido em veste feminina, a saracotear-se, a requebrar-se. Lavador, amava a profissão, gostava de mexer em pano. Ao trazer-nos cuecas, lenços, pijamas, estendia-os na cama, retardava-se a acariciá-los com os dedos grossos, nojentos. Um companheiro brigara com ele, e vendo-o chorar, covarde e bambo, invectivara-o: “Que é isso! Homem não chora”. E o desgraçado respondera, no longo pranto: – “Você não sabe que eu não sou homem?”.

          Outro notório homofóbico era Humberto de Campos: “Esse jornalista que é meu amigo, principiou a aparecer de alguns anos a esta parte em companhia de rapazes, mais ou me nos bonitos, que tomava à sua conta, sustentando-os. Fazia-se acompanhar por eles, vestindo-os da melhor roupa, levando-os às corridas, tratando-os com zelo, o ciúme, os cuidados que os homens só dispensam aos amantes. E logo a notícia correu e o boato se fixou, de que esse meu amigo se entregava à pederastia ativa”.

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         A homofobia alimentava, como sempre, a violência. E certo Dr. Bruxellas, em São Luiz do Maranhão a encarnou. Numa segunda-feira de Carnaval encantou-se com certo “corpinho todo branco, com dois seios aprumados clamando por amores e carícias voluptuosas […] abraçou o dominó, procurando, atacado de cio, o bico dos seios que julgava duros e encantadores da rapariga de dezoito anos […] a suposta mulher, também embriagada, falou ao natural com sua voz grossa de homem: – Não me aporrinhe seu frango, que eu sou é macho”. Depois de muitos socos e bofetadas foram ambos levados à presença do delegado de polícia.

         Não faltavam, tampouco, as então chamadas tríbades. Cenas de homossexualismo feminino já tinham sido sugeridas em Melle. Cinema, romance dos Anos Loucos de autoria de Benjamim Constallat. Outra obra, Vertigem, assinado por Laura Villares conta os amores da cocotte francesa, Liliane Carrère, pela paulista Luz Alvarenga enquanto outras, não muitas, mas, menos importantes apresentam personagens também numa dupla: “as viciadas”, lésbicas em tempo integral. E as eventuais, heterossexuais que, de tempos em tempos, se entregavam a uma mulher. Para além da literatura, pouco se sabe sobre o universo amoroso das homossexuais femininas e mesmo Luís Mott, autor de livro pioneiro sobre o assunto, reconhece a falta de informações para a época. O preconceito contra a mulher homossexual era brutal: perda dos filhos, no caso das casadas; insegurança econômica, no caso das remediadas, brutal pressão familiar para que arranjassem namorados, noivos e maridos. Não foram poucas as espancadas por pais, maridos ou filhos revoltados com a situação. Não foram poucos os suicídios em que um bilhete deixado aos parentes, revelava o desespero de jovens, massacradas com a intransigência familiar. Tônia Carrero tinha amigas “viciadas” no colégio. O assunto vivia cercado por ignorância e dubiedade:

          “Você reparou a Laura? Está esquisita. Não deixa Cremilda beijar mais ninguém. Só ela. Isso é ciúme, vai ver que é meio homem.” Risadas. “Léo-Léa é homem. Veste de normalista, mas tem até barba. Alguém já falou com ele? Com ela? Eu já – tem uma voz grossa. E tem gogó. Mas tem peitos, pensa Luzinha, com inveja. Todos sabem que Léo- Léa era doente, era um caso pra medicina. Não usava ser homossexual. Não se conhecia nenhum. Coitada da prima Zuleica, prima da mãe. O pai não quer que ela case porque o namorado tem um irmão que é … – sussurram nos ouvidos. Risadas dos meninos entre si. Luzinha não entende do que se trata. Fica imaginando. Será que roubou alguma coisa? Então por que risadas maliciosas? As meninas também não sabem essas coisas, não é nem assunto de conversa. Como se não existisse na face da terra” .

          Nelson Rodrigues inspirou-se do ambiente de internatos femininos para, em Álbum de Família, contar sobre o pacto de amor de Glória e Tereza que, depois de beijos e juras, são expulsas para não contaminar as demais “inocentes”.

  • Texto de Mary del Priore. Baseado em “Histórias da Gente Brasileira: República 1889-1950 (vol.3)”. Editora LeYa, 2017 . 
“"Les Deux Amies (L'abandon)" (1895), Henri de Toulouse-Lautrec

“”Les Deux Amies (L’abandon)” (1895), Henri de Toulouse-Lautrec

 

 

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  1. Anderson

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