História e ficção: a paixão de Leopoldina por D. Pedro

 

       No Brasil, vários autores têm nos oferecido oportunidades de adentrar a intimidade de figuras históricas, lembrando-nos, com maior ou menor talento, que em todas as épocas eles amaram, sofreram, viveram a vida de todas as maneiras e que o essencial de suas experiências se encontram em histórias que já deram a volta ao mundo. Devemos lembrar que o romance histórico é um gênero perigoso: entre a história como ciência, e o romanesco como terreno de todas as liberdades possíveis, o autor ombreia regiões fronteiriças e cheias de armadilhas. A história nos oferece, contudo, tantas anedotas, amores e crimes, tantos elementos propriamente romanescos que é difícil não se deixar tentar. Difícil é acertar.

     A biografia romanceada da vida de D. Leopoldina, Meu adorado Pedro, de Marisa Moll, diferentemente do que se possa imaginar, é um acerto. Acerto por duas razões. Seu conteúdo histórico é correto, e seu romance, ou melhor, a história das dores de amores da imperatriz, preenche os melhores requisitos do gênero: lamento, grandeza e banalidade se misturam harmoniosamente na voz de uma mulher seduzida e abandonada. Nenhum excesso açucarado na pintura dessa criatura terna e realista, prisioneira de uma constatação: seu fechamento nas estruturas e convenções de uma sociedade onde tudo lhe parece adverso, estranho e oposto ao que conhecia.

       Marisa Moll constrói, com delicadeza, uma Leopoldina plena de valores clássicos, o retrato mesmo de uma mulher capaz de renunciar, de resignar-se e de seguir amando, ainda que carente e insatisfeita. A autora lança mão de toda a complexidade da nova situação que cerca o personagem, como, por exemplo, a sua vinda para um país tropical, onde calor e mosquitos somavam-se a outras adversidades, tais quais os “affairs” do marido, para acompanhar o estado de paixão unilateral da austríaca.  Um estado, diga-se, cuja riqueza é sua própria dualidade. Estado dividido entre passividade e atividade, entre o mundo interior e o mundo exterior da jovem de vinte anos que emigra para o Brasil. Pela hábil narrativa da autora, ora vemos a rainha entregue às sensações que assaltavam seu corpo submetido ao sexo, aos enjôos da maternidade, à fome de arroz com feijão, ao pavor do envenenamento. Ora a vemos agir sobre o mundo exterior decidindo pelo “Fico”, escrevendo aos diplomatas austríacos como o barão von Stürmer ou ao ministro Marialva, tecendo relações entre seus pares da Missão Austríaca, colocando-se questões, produzindo críticas e interpretações: “O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem vosso apoio ele fará sua separação. O pomo está maduro, colhei-o já, se não apodrece”. Ela trabalhava para converter a fervente paixão por seu “marido e adorado Pedro” em pacífica comunhão amorosa, lutando contra seus assomos intempestivos, “os ataques de nervos”, as violências físicas e verbais. Era a luta do espírito contra o instinto.

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       Vê-se que Marisa Moll pinçou com cuidado, nas frestas de uma correspondência epistolar regida por regras de formalidade, as confidências pessoais, a solidão, o diálogo com o “querido papai” e, para além do atribulado quotidiano de Leopoldina nos trópicos, a paixão, a tristeza, o sonho, enfim, as confissões de sua intimidade: “O meu querido esposo não me deixou dormir” ou desculpando-se pela má letra, “o meu pueril senhor consorte empurra minha mão”.

       A ficção, por sua vez, informa sobre a história: a autora descreve sem maior pretensão um Rio cercado de matas e chácaras; a cidade de ruas quietas, cujo silêncio era quebrado pela cantoria de escravos; a Corte singela, quase pobre e, certamente, inculta; o Jardim Botânico onde os primeiros chineses, trazidos por D. João VI tentavam plantar chá; os Te Deum no Outeiro da Glória; as tensões entre os sogros e D. Pedro, visto pelos pais como adversário político; as tristes ceias de natal seguidas de jogo de cartas; o cultivo de rosas nos jardins da Quinta da Boa Vista. Enfim, não há qualquer preocupação maior em esgotar informações, mas em formular um cenário no qual se deslocam os personagens da história, cenário, diga-se, iluminado por gentis vinhetas iconográficas cuidadosamente pesquisadas por Damien Bezerra de Mello. O livro se beneficia ainda de deliciosas epígrafes retiradas da correspondência de Leopoldina ou de seu diário, o Caderno Vermelho: “Eu me esforçarei por ter sempre uma hora certa para me levantar e outra para me deitar, evitando o excesso de sensualidade durante o repouso”.

        Mas, há outro detalhe importante que faz desse livro uma leitura especial. Personagem e autora se dão as mãos no decurso dos muitos capítulos e por vários momentos, quem interessa não é a primeira, mas a segunda: “Leopoldina: trago-te notícias […] dou primeiro a ruim. Ainda não consegui dar início ao romance, estou falando do teu romance […] Leopoldina, minha boa amiga, passei os dias que me couberam em Viena, procurando-te nos palácios”. A vida de D. Leopoldina se encontra no texto, mas a escritura de Marisa Moll, dá um jeito de se imiscuir nos intervalos ou nas intermitências e, na passagem de uma inicial de mulher a outra, vai tecendo um texto onde amor, desespero e melancolia se reúnem na mais tradicional vertente sthendaliana. Nesses instantes, a voz ou os monólogos da autora revestem aqueles do personagem. Não se sabe quem fala por quem: “mas, quem disse que o marido é o amigo da mulher ou que ele deveria ser?” ou “Uma parte da vida a podemos suportar por causa dos sonhos e das ilusões”. Personagem e autora parecem emergir juntas do fundo de um desgosto. Elas finalizam, lado a lado, o trabalho do luto, depois da perda do objeto amado. A primeira, corpo desolado e alma estilhaçada diante de um marido sem qualidades. A outra, saída, talvez de uma experiência de dor física que a impede de caminhar, malgrado as admoestações médicas. A autora chama a personagem “minha amiga” e olhando por cima de seu ombro, lê uma fábula sobre paixão e morte. Ambas, as vozes, porém, parecem nos falar de um amor triste e altruísta, amor de sonhadoras impenitentes. Mas, ambas nos dizem que quaisquer que sejam os dramas que suscite, que seja contido ou submisso, ninguém escapa ao seu desejo.

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      Alguém já escreveu que uma história de amor é também uma maneira de viver, de olhar e de dizer o sentimento. A beleza desse livro é essa. Nele, romance e história se entrelaçam, consolidando uma literatura feita para o gozo de ler.

Resenha  de Mary del Priore sobre o livro Meu adorado Pedro – Romance baseado na vida de Dona Leopoldina de Marisa Moll, Bom Texto Editora e Produtora de Arte, 2001.

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  1. Gizelle Antunes Braga

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