A expressão “endemoninhada” era o adjetivo atribuído às mulheres consideradas “histéricas” pela medicina, no final do século XIX. Na época, os médicos não acreditavam mais em possessão por Satã, mas outros males, tais como “ilusões esvaecidas, esperanças quiméricas e sonhos malogrados”, serviam para explicar as causas de distúrbios mentais. A inveja, por exemplo, podia criar histéricas. Ao chamá-las de “endemoninhadas”, os médicos retomavam a crença de que mulheres eram mais frágeis, sujeitas a errar e vítimas de seus próprios sentimentos descontrolados. Afinal, elas eram descendentes de Eva. E Eva era a responsável pela conversa com Satã e expulsão do Paraíso, não?
Segundo alguns doutores, em Paris, a histeria era muito comum, pois, diziam eles, tendo recebido quase a mesma educação, ao se casarem, as pobres invejavam os maridos das ricas. O casamento curava a doença? Não: “porque as dificuldades cotidianas e os pequenos cuidados do lar serão pasto insuficiente às vastas aspirações de uma imaginação desregrada”. A miséria, o pesar e o mal-estar podiam agravar o estado. E, sendo apenas “histeria ligeira”, não se tratava de uma verdadeira doença, mas de um dos aspectos da personalidade feminina: “Pode-se mesmo dizer que as histéricas são mais mulheres do que as outras; têm sentimentos passageiros e enérgicos, fantasias móveis e brilhantes e, entre tudo isso, dificuldades de dominar a razão”.
As “endemoninhadas” encheram as páginas da Gazeta de Notícias no início da década de 1880. Casos eram transcritos. O primeiro sintoma? O ódio ao marido. Afundar-se na leitura de poetas e romancistas menos recomendáveis era outro sinal da doença. “Gestos de mocinha e tom chulo nas discussões”, outros ainda. Só comer salada e pão com sal, lágrimas seguidas de gargalhadas, invejar as “existências tumultuadas” e, resumindo, “sentir, pensar, não ter vontade, eis as três misérias nas quais se debatem as pobres histéricas”.
Elas enchiam os hospícios, e sua doença tinha gradações: podia ser leve como a de madame Bovary, personagem de Flaubert, ou grave, com ataques convulsivos e delírios tratados a choque e água gelada nos melhores hospitais. O novo recurso era tratá-las espetando-as com longas agulhas sob anestésicos recém-inventados. Da mesma forma que os inquisidores e exorcistas aplicavam tenazes no corpo das possuídas para encontrar a marca do Diabo, aqui também se buscava a fonte da “lesão orgânica material” por intermédio de instrumentos pontiagudos. Como não se encontrava nada, a conclusão era de que endemoninhadas e histéricas sofriam de uma “perversão dinâmica”!
Os médicos caprichavam na “descrição dos sintomas que podiam ser chamados demoníacos”, mas que não passavam de um grande ataque de “histeroepilepsia”. O problema não era o Diabo, mas o aparelho reprodutor feminino. Caretas, roupas e lençóis rasgados, saltos prodigiosos, corpos vergados sobre a cama à volta da qual se reuniam para observar a endemoninhada o célebre dr. Charcot, fundador da neurologia, e sua equipe. E o jornal, a concluir: não admira que em épocas remotas se acreditasse que só o Diabo podia desencadear tais reações no corpo humano. O ponto de partida do acesso demoníaco era o ovário. Para cessar o ataque, bastava apertar a barriga da paciente.
Cada histérica tinha uma forma peculiar de delírio. Nele, a mulher recordava episódios de sua vida, com sustos e emoções violentas entre gritos. Ratos, sapos e outros animais imundos faziam parte das alucinações. Mas, apesar da aparente desordem dos ataques, “tudo estava previsto, regulado e determinado; toda aquela desordem marcha com a precisão matemática de um relógio bem certo”. Era a ditadura da ciência!
Mas o que queriam as endemoninhadas? Que alguém se interessasse por suas pequenas paixões e cóleras. Que sua inteligência e vestuário fossem admirados. Que aceitassem suas mentiras e palavras desabusadas. Que se adotassem suas “antipatias e simpatias absurdas”. Umas simulavam uma gravidez inexistente. Outras se cortavam com tesouras. Outras ainda roubavam. Em resumo: queriam atenção, segundo os doutores. Eram carentes. O famoso Charcot passou a tratar a histeria com hipnose.
E na corte não ficamos atrás: a moda da hipnose pegou. O Instituto Elétrico e Magnético Federal, situado à rua Sete de Setembro, vendia o livro de certo dr. J. Laurence, que ensinava “a última palavra sobre hipnotismo ao alcance de todas as inteligências”. Instruía sobre como recrear com o magnetismo e o hipnotismo, adivinhar a sor- te, descobrir criminosos, veios de minerais e coisas ocultas, transmitir a distância qualquer recado pela ação do pensamento, corrigir maus hábitos, desamor e infidelidade, extinguir gordura, surdez e fraqueza de vista, entre outras tantas facilidades. Nos Estados Unidos, tivera 84 edições e era vendido por 10 contos de réis.
Em sete aulas, o mesmo Instituto Elétrico e Magnético oferecia lições sobre “o governo magnético dos outros” e sobre como ter poder nas relações sociais, profissionais ou com o sexo oposto. Não esclarecia, porém, como combater a histeria ou as endemoninhadas. Isso continuava tarefa de doutores.
– Mary del Priore (extraído de: “Do Outro Lado: a História do Sobrenatural e do Espiritismo”).
“Ofélia”, de John Everett Millais.
Gostei bastante! Muito dos séculos passados que não sabia. Agora ficou esclarecido!!