Por Paulo Rezzutti.
Se a teoria da história é um assunto espinhoso para ser tratado fora da academia, a biografia nem tanto, uma vez que é “[…] evidente o seu poder educativo, como paradigma de valores encarnados em determinada existência, servindo de modelo e estímulo. Mas ainda há, em terceiro lugar, o seu caráter de método de interpretação histórica”, afirma Antônio Cândido.
Metodologicamente, a biografia é um instrumento perigoso, no qual é possível encontrarmos uma série de obstáculos que podem prejudicar o resultado final do trabalho. O risco de simplificação, por exemplo, é um deles. Ocorre quando o biógrafo-historiador reduz a situação histórica a acessória, colocando o biografado como ator central. O processo todo e os outros personagens que atuam sobre as ações são apagados no que diz respeito ao biografado, traçando diretamente um nexo causal entre personagem e acontecimento, colocando a culpa ou o mérito de processos históricos complexos sobre os ombros de uma única pessoa que, quando muito, foi um ator privilegiado.
Por vezes, o biógrafo, esquecendo-se um dos pontos centrais do trabalho, que é o estudo de personalidade, dissolve o biografado no contexto histórico-social. Nesse ponto, ele pode fazer uma excelente obra de historiador, mas estará hipertrofiando o que não deveria passar de um quadro.
São várias as armadilhas das quais o biógrafo tem que escapar. A identificação extrema com o biografado é uma delas. Tem que existir algo que o liga ao seu biografado, pois ninguém vai atrás de perguntas cujas respostas não lhes interessam. Porém, todo biógrafo deve estabelecer uma relação responsável e equilibrada com ele.
Outro ponto relativo à biografia refere-se à formação do biógrafo. Se for de vocação histórica, a tendência é dissolver o biografado no cenário e no tempo, enquanto o de formação literária estará inclinado a recriar o personagem como ficção. O único ponto em comum entre ambos é que se servem igualmente do personagem, um para fazer história e o outro romance.
A biografia histórica é realmente método quando o biógrafo tem plena consciência do contexto em que se insere o biografado, de modo a resultar não apenas uma interpretação da personalidade, mas a compreensão do seu papel e, através dele, da época.
É normal vermo-nos fazendo perguntas mentais – ou, aqui abro um parêntese confessional mais íntimo: até sonharmos – interrogando nossos personagens. Porém, algumas vezes, é possível que o diálogo tome uma força tão impressionante que leve o biógrafo a “tomar as dores” do seu biografado, não só entendendo os seus pontos de vista, mas ainda saindo em sua defesa, fazendo apologia e criando não uma biografia e sim uma hagiografia.
“[…] Com relativa angústia, mas com o intento de “defender” nossas “obras”, acabamos por criar heróis – paladinos em sua coerência – e poucas vezes nos contentamos em deixar brotar ambivalências tão próprias às vidas dos outros, que são também nossas. O resultado, muitas vezes, é a construção de biografias que se comportam quase que como destinos; ou verdadeiros tribunais de defesa”, diz Lilia Moritz Schwarcz.
Ao fugirmos da tentação de dar um sentido para as incongruências do biografado, “as ambivalências tão próprias às vidas dos outros”, emergem, segundo a mesma autora. Isso acaba conferindo ao biografado um lugar no mundo dos humanos que erram e que acertam na maioria das vezes de maneira natural, sem que tenham racionalizado extremamente cada passo dado em todos os atos de sua vida, como às vezes o biógrafo tem tendência de acreditar, sem lembrar o quanto é falível. Quantos de nós, se chamados a explicar determinadas ações tomadas durante a sua própria existência, teria facilidade de racionalizá-las?
“[…] As nossas concepções conscientes a respeito do que a vida deve ser raramente correspondem àquilo que a vida de fato é. Em geral nos recusamos a admitir que exista, dentro de nós ou dos nossos amigos, de forma plena, a impulsionadora, autoprotetora, malcheirosa, carnívora e voluptuosa febre que constitui a própria natureza da célula orgânica. Em vez disso, costumamos perfumar, lavar e reinterpretar, imaginando, enquanto isso, que as moscas e todos os cabelos que estão na sopa são erros de alguma desagradável outra pessoa”, segundo Joseph Campbell.
Ao longo da produção de uma biografia, é impossível não sentir nada pelo biografado. Mais do que Le Goff, que afirma ter detestado São Luís tanto quanto o amou, eu odiei a minha biografada, a Domitila de Castro, a marquesa de Santos, mais do que a amei. E, se ela estivesse diante de mim, teria muitas “verdades” a lhe dizer. Porém, busquei respeitá-la sempre, sentindo que a única obrigação moral que o biógrafo tem é com o biografado. Não é possível julgá-lo e condená-lo pelos sentimentos que afloram do homem do século XXI ao analisar um personagem, suas ações e paixões, dois séculos antes.
Referências:
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1997.
CANDIDO, Antonio. Limites da biografia. In: Remate de males. Departamento de Teoria Literária IEL/UNICAMP, número especial Antonio Candido, Campinas, 1999a. Disponível em http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/article/view/3557. Acesso em 31 de maio de 2014.
CANDIDO, Antonio. Perenidade da biografia. In: Remate de males. Departamento de Teoria Literária IEL/UNICAMP, Número especial Antonio Candido. Campinas, 1999b. Disponível em http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/article/view/3558. Acesso em 31 de maio de 2014.
LE GOFF, Jacques. São Luís: biografia. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Biografia como gênero e problema. In: Revista História Social, nº 24. Dossiê História e Biografia. Campinas: Unicamp, 2013. Disponível em http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/1577. Acesso em 31 de maio de 2014)
Domitila de Castro, a marquesa de Santos.
Ameiiii!