Em São Paulo, desde o século XVII, empreendedores como Guilherme Pompeu de Almeida começaram a vida arrendando forjas de ferreiros. Ele fabricava facas, cunhas e anzóis, produtos básicos nas trocas com nativos, mas em algumas décadas, depois de ter treinado escravos, já tinha cinco oficinas de metalurgia e uma serralheria, cada uma comandada por escravos pagos e com direito a ter, eles mesmos, escravos. Prestamista, Almeida financiou vizinhos e parentes em missões de “resgate”. Numa delas, recebeu em paga cinco mil índios guaranis, muitos deles, artesãos especializados, todos extirpados à cidade espanhola de Vila Rica do Espírito Santo. Financiou parte da montagem da colônia de Sacramento, além de ter abastecido a tropa.
Exceção? Não. De acordo com o exame de testamentos e inventários efetuado por John French no século XVII, as maiores fortunas vinham do setor mercantil, e não de terras cultivadas ou das bandeiras. Entre elas se encontram os nomes do mameluco Gonçalo Lopes, cuja fortuna em 1693 montava a 6,6 contos, ou Leonor de Siqueira, viúva e alfabetizada que juntou uma das maiores riquezas da cidade empregando o dinheiro em negócios.
Os testamentos e inventários revelam uma cidade ativa onde não faltavam tendas de ferreiro ou carpinteiro com suas ferramentas: verrumas, goivas, formões, martelos de orelha, plainas, junteiras, garlopa, cepilhos, tornos, serras de mão, ferro de molduras, compassos. E bigornas, tenazes de tirar vêrga, tornos, tresmalhos, foles com suas biqueiras, mós e malhos. Certo autor referiu-se à cidade de São Paulo como uma “colmeia ruidosa” onde se labutava para fazer jus à frase do governador-geral: “Pelo bem comum e para que essa vila não pereça”. Instrumentos diversos contam a história desse trabalho barulhento e repetitivo.
Os “comerciantes de grosso”, poderosos e importantes para os interesses do Estado, eram grandes financistas e usurários, diferenciando-se dos comerciantes que vendiam “a retalho”, ou seja, que tinham lojas. Eles podiam exercer qualquer atividade, e essa era sua força. Especulavam, financiavam, asseguravam, armavam navios, arrematavam comendas, além de contratos públicos e privados, etc. A Coroa tinha interesse em tê-los como sócios menores nas companhias monopolistas como a que foi fundada no Grão-Pará e Maranhão, por exemplo.
Na segunda metade do século XVIII, esses comerciantes consolidaram sua posição por meio do comércio de longa distância. Motivo, aliás, de queixumes para Martinho de Melo e Castro, ministro de Estado em Lisboa, que escreveu em 1770: “Não se pode, sem tristeza, ver como os coloniais brasileiros tomaram o comércio e a navegação com a costa da África, com a total exclusão de Portugal”. Comércio, sobretudo, de escravos. Com fortunas superiores aos senhores de engenho ou grandes agricultores, eles almejavam, porém, a terra e o poder que essa simbolizava. A terra, e apenas ela, nobilitava, enobrecia, enquanto a atividade comercial urbana continuava malvista pela sociedade. Arcaicos: em vez de se inserirem na mentalidade da burguesia mercantil que prosperava no Norte da Europa e Estados Unidos da América, tais comerciantes de grosso sonhavam com títulos honoríficos e grandes plantações, como seus ancestrais alfacinhas.
Desde os primeiros séculos da colonização, vemos mulheres à frente de pequenos negócios. Elas não só sustentavam suas casas, mas, ao contrário do que se acreditou por muito tempo, eram visíveis nas cidades. Estalajeiras que “davam de comer em suas casas”, costureiras, tecedeiras, as que “tinham casa de vender coisas de comer e outras mercadorias”, “mestras de ensinar moças a lavrar e cozer”, além de taverneiras, aparecem na documentação da Inquisição em suas visitas a Salvador e Recife. Padeiras? Muitas. Em São Paulo, onde se plantava trigo, a Câmara Municipal ameaçava aquelas que adulteravam o pão, misturando-lhe à massa farinha de mandioca e de milho branco. Na mesma cidade, padeiras mantinham constante litígio com as Câmaras que controlavam o peso e o preço do pão. E elas recorriam às greves, petições, protestos e embustes para manter seus negócios e controlar, à sua maneira… o peso e o preço do pão!
O comércio local de comestíveis, tanto os produtos da terra quanto os vindos do Reino, era sobrecarregado de taxas e impostos e, por isso, manipulado por toda uma hierarquia de pequenos e grandes funcionários, além dos mercadores com disponibilidade para atravessar e estocar produtos como sal, farinha e aguardente, podendo, assim, especular em momento de crise. A disputa entre facções locais deixava ampla margem às desordens e ao contrabando, não só em São Paulo, mas em outras capitanias também.
Em São Paulo, onde a vida era áspera e rude, reinava o “gibão de armas” com os quais os homens se internavam pelos sertões e matos ou a “saltibarca de picote” com que se assistia à faina agrícola. Ao final do século XVI, a julgar pelos testamentos, era o fim dos vastos “tabardos”, dos “pelotes de mangas golpeadas”, das “gorras de guedelha”, dos “pantufos”. Os calções perdiam os “golpes”, estreitando-se até os joelhos. As meias longas, chamadas de calças, encurtaram-se em meias calças. A bota alta iria acabar abaixo dos joelhos, com o cano voltado “em canhão”. Pouco a pouco, a cor conquistava a indumentária e os bandeirantes usavam coletes amarelos, gibões azuis da cor do céu, roupetas verdosas, calções verde-mar, meias azuis, amarelas ou verdes, casacas cor de flor, cor de cor de pessegueiro, calção de seda amarela, entre outras roupas vivas e chamativas.
- Texto extraído de “Histórias da Gente Brasileira: Colônia (vol.1)”. Editora LeYa, 2016.
Ponte Santa Ifigênia, de Debret.