A pesquisa histórica e suas surpresas: os “garotos-propaganda”

Por Levi Jucá.

Como essa é minha primeira participação no História Hoje, apresento-me. Sou cearense, natural de Fortaleza, mas com raízes familiares e residente em Pacoti, pequeno município da Serra de Baturité, zona de mata atlântica, uma ilha verde e de clima ameno em pleno sertão. Sou licenciado em História e trabalho com educação básica desde 2008. Comecei quando ainda estava na faculdade, com um cargo técnico de estagiário-arquivista no Arquivo Público do Estado do Ceará, lugar em que pude dar início ao meu ofício de pesquisador, que hoje complementa meu trabalho docente. Publiquei em janeiro meu primeiro livro, intitulado Pacoti, História & Memória, que diz respeito ao passado de minha cidade.

Trabalho, neste momento, no segundo volume da série História & Memória sobre o município serrano de Guaramiranga, vizinho de Pacoti. Pesquisando a história local, essência da micro história, acessamos muitas vezes os acervos privados de interesse público. O contato com os documentos do arquivo pessoal da memorialista Fátima Fraga, que há décadas coleciona “tudo” sobre a cidade, me levou a analisar fotografias que retratam a Guaramiranga da década de 1920, período intermédio de decadência econômica cafeeira e a sua belle époque tardia.

Essa Petrópolis cearense que até mesmo recebeu a visita do Conde d’Eu em 1889, três meses antes da derrocada do Império, apesar de pequenina com centro que se resume à um cruzeiro de ruas, pode ser considerada a mais urbanizada e elitista das cidades serranas por razões como o seu pioneirismo turístico, arquitetura rebuscada, terceira cidade cearense a eletrificar-se, primeira estrada de rodagem da Serra, detentora de agremiações literárias, jornais locais, etc.

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Nas fotos de 1926, temos cenas de um mesmo evento aonde vê-se que a alva faixa estendida entre duas palmeiras intitulavam-no com letras graúdas:  FEIRA-LIVRE. Tradição que remonta à Antiguidade, típica no Brasil e peculiar no Nordeste, como oportunidade para agricultores vindos de sítios vizinhos ou mesmo sertanejos negociarem produtos de modo livre dos impostos cobrados pela então coletoria municipal.

Organizada desde as primeiras horas do amanhecer dominical, contava uma dúzia de barraquinhas, quitandas cobertas a proteger do sol ou da neblina matutina os secos e molhados, vendidos em retalho ou grosso, ao gosto dos fregueses cada vez mais numerosos vindos da ladeira da Igreja tão logo acabada a missa. Porém na multidão distinguem-se garotos ainda em calças curtas, com idade entre sete ou dez anos, empunhando placas de madeira e papelão em que parece estar impressos textos e ilustrações, levando a crer que são anúncios.

Utilizando um escâner de alta precisão na captura e resolução da imagem, digitalizei as fotografias pelas quais pude descobrir detalhes praticamente imperceptíveis a olho nu, mesmo sob a lente de uma lupa: o teor dos tais anúncios. Tratava-se nada menos que as chamativas propagandas da Bayer, indústria farmacêutica alemã estabelecida no Brasil desde 1896 e pioneira em divulgar seus anúncios, a partir de 1911, antes mesmo da criação d’A Eclética, primeira agência de publicidade do país (São Paulo).

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Pode-se dizer que a história das crianças no Brasil recebe, pois, o retrato dos literalmente “garotos-propaganda” (longe do atual significado da expressão) que no âmbito do trabalho infantil figuravam ao lado doutros pequenos serviços como a lida de jornaleiros (os newsboys americanos), entregadores, condutores de malas, vendedores de bilhetes de loteria, operários fabris. Nas metrópoles, comumente esses menores serviam às atividades ilícitas, provocando a delinquência juvenil.

No caso que estudo, os meninos contratados pela farmácia local, apregoavam à baixo-custo, como de praxe a qualquer outro operário mirim, a perambular na feira sua publicidade colorida, bem ilustrada e de chamadas sedutoras. Desde então tenho procurado por imagens/cenas semelhantes a essa em fotografias de outras cidades, na web, e até o presente nada encontrei.

A Bayer, em especial, buscou nos elementos culturais, tipos populares, hábitos, costumes e eventos como seus principais interlocutores com os consumidores. O conhecido slogan “Se é Bayer é bom” foi criado na efervescência da Semana de Arte Moderna de 1922, pelo poeta Bastos Tigre, cujo filho, coincidentemente, viria a casar-se com uma guaramiranguense!

O reclame em forma de “tirinhas” e de “caráter rural” apresentado por um dos cartazes da foto que analisei, exibe a historieta “A Salvação de Seu Chico”, personagem que depois de apear do seu jumento, senta em um caixote e passa a reclamar de terrível dor de cabeça tendo por companheiros de lamúria diversos bichos de fazenda (porco, pato, coelho, cachorro e vaca) que também lamentam e depois comemoram a vitória de Seu Chico que ao ingerir um comprimido de “Aspirina” voltou a ser “feliz”. A Bayaspirina, como também era chamada, foi sem dúvida o principal medicamento da Bayer. Grande símbolo sociocultural do século XX e as frequentes dores características do cotidiano estressante da modernidade que ainda nos perseguem.

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Nas mesmas fotos, outros cartazes de medicamentos podem ser decifrados anunciando o Mitigal, que combatia as coceiras provenientes de sarnas ou piolhos e a Cafiaspirina, também famoso analgésico da marca. Todos esses remédios decantados em suas propriedades terapêuticas por vozes infantis nas ruas e na feira da pitoresca Guaramiranga, cuja tranquilidade quiçá trouxesse no ofício um pouco de diversão para a trupe de crianças, verdadeiros “garotos-propaganda”, que depois voltariam para casa com ao menos uma moeda no bolso.

 

Referências:

História das Crianças no Brasil, org. de Mary del Priore, 1998.

Se é Bayer é bom, de Zélio Alves Pinto, 1986.

feira-livre (1)

 

seuchico

 

9 Comentários

  1. Laura de Goes N. Leal
  2. XICO LUIZ
  3. MARIA CLARA FRAGA PEREIRA
  4. Iolanda Campelo de Andrade Sampaio
  5. Natania

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